Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Janaína Oliveira

Pesquisadora convidada e debatedora da primeira Sessão Verberenas.

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ATRAVESSANDO PORTA PARA O CÉU

Pensar as cinematografias africanas nos demanda um deslocamento epistemológico. É dessa forma que inicio sempre minhas aulas no curso “Cinema Africano para Descolonização da Telas”.1 A afirmação, um tanto categórica, é verdade, orienta-se pela compreensão de que um encontro mais proveitoso com os conteúdos pode acontecer a partir do momento em que reconhecemos que outras ferramentas de reflexão, e também de gosto, são necessárias para estabelecermos relações com os filmes. Basicamente, convoco ali a possibilidade de mobilizar outras epistemologias que não a transparência da compreensão como prerrogativa para fruição, que marca a forma eurocêntrica de ver cinema. O convite, que muites recebem com provocação ou desconfiança, nada mais é do que um abrir de caminhos para as “singularidades irredutíveis” de que nos fala Édouard Glissant, em sua defesa da ideia de opacidade como princípio basilar das relações que estabelecemos com o mundo.

Aceitar as singularidades em sua irredutibilidade é, portanto, reconhecer que há momentos em que não vamos entender, decodificar ou tornar inteligíveis as imagens em movimento na tela. Mais que isso, pode ser também a oportunidade de assumirmos que temos que, e queremos, nos relacionar de outros modos não só com os filmes, mas também com o mundo. Nesse sentido, a relação (mais uma vez pensando com Glissant) estabelecida é mais importante do que qualquer explicação, o processo mais importante que o fim — que, por sua vez, nunca é em si mesmo. Portanto, o diálogo proposto na introdução do curso e transposto aqui nesse preâmbulo da conversa com Porta para o Céu (1989), filme da marroquina Farida Benlyazid, inscreve-se em consonância com práticas, desejos e reconhecimentos da existência de outras culturas fílmicas possíveis que não a do cânone tradicional do cinema, ao qual Girish Shambu, em seu manifesto, nomeia de “velha cinefilia”.2

Para mim, este que é o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher no Marrocos foi mais um desses convites ao deslocamento nos modos de conhecer. Logo nas primeiras cenas do filme, alguns dos temas que marcam esse convite se anunciam. O primeiro em relação à temporalidade não linear da história que veremos se desenrolar na tela. Benlyazid começa sua história no passado, com um flashback do pai de Nadia — a protagonista do filme — em seu leito de morte, relembrando um retorno para casa no qual encontra a esposa grávida. Uma câmera olha para o alto, e ao descer encontra o pai de Nadia jovem, caminhando pelas ruas estreitas e sinuosas de Fez até chegar à casa na qual a maior parte da trama vai acontecer.

No trajeto e na chegada à casa, os traços arquitetônicos da cidade apontam para a complexa trama cultural que marca a história do Marrocos e que permeia Porta para o Céu. As presenças moura e hispânica nas grandes portas em arco e nos mosaicos (ou ladrilhos Zellige), a influência Sufi no rebaixamento das portas — como lembrança de humildade ao entramos no ambiente —, pensadas em contraste com as grandiosidades das construções islâmicas; a abertura para jardins internos de influência andaluz, que dialogam com os preceitos corânicos de desenvolvimento interior como prerrogativa na vida — individual e coletiva.

Todas essas tramas de elementos, com suas múltiplas historicidades e origens, que desafiam de pronto a nossa espectatorialidade ocidentalizada, se chocam com a chegada de Nadia, vinda da França de avião logo após a sequência do flashback. A protagonista desembarca na cidade natal com calça e jaqueta jeans, camiseta regata de malha e um penteado mullet com partes do cabelo tingidas de vermelho, no melhor estilo punk / New Wave da década de 1980. Mas a irmã de Nadia, que vai buscá-la no aeroporto, lembra-a que ela está em Fez. “Espero que suas roupas não sejam todas como essa. Você vai ter que usar o jallabah3 para sair.”

O choque entre as culturas parece se apresentar ali como tônica do filme, que o conectaria à grande parte das cinematografias africanas — ao Sul e ao Norte do Saara, — na crítica à longa duração dos danos e poderes da colonização sobre os países do continente. Esse choque se materializa nas polaridades representadas pela irmã — casada e subserviente ao marido, vivendo num subúrbio, completamente imersa nos códigos islamizados —, e pelo irmão Driss, que mora na França e recusa integralmente suas origens. Nadia, por sua vez, coloca-se nesse lugar ao meio, afirmando literalmente que não quer escolher entre as duas culturas. Ao contrário, ela diz “querer tudo”, reivindicando nesse primeiro momento tanto o pertencimento ao Marrocos da linhagem paterna, quanto à França da mãe.

Porém, os traços ocidentais de Nadia se dissolvem à medida que ela se reterritorializa. O reencontro com as pinturas da mãe, falecida em sua infância, e a morte do pai dão início a esse retorno ao lar. Contudo, é o encontro com Kirana que marca a mudança da personagem principal. Nadia, emocionada ao ouvir os cantos da mais velha no velório, reconecta-se a partir dali com suas raízes culturais e religiosas. Junto à Kirana — inspirada por ela, eu diria —, Nadia vai desenvolver uma forma singular de lidar com ambas as origens.

Nas dinâmicas das opacidades presentes no filme e nas relações que podem ser pensadas a partir dele, Kirana constitui uma peça-chave. Uma mulher viúva, de meia idade, que após a morte do marido e do casamento da filha passou a viajar o tempo, cantando em rituais diversos. É através dessa mulher que Benlyazid introduz a temática central de Porta para o Céu: a agência feminina no contexto islâmico. É com a ajuda de Kirana que Nadia transformará a casa herdada do pai em um abrigo, zawiya, para mulheres ameaçadas ou rejeitadas pela sociedade marroquina.

A centralidade da agência das mulheres marroquinas já estava indicada nas cartelas iniciais do filme, quando Benlyazid dedica o filme a Fatima Fihra, uma mulher que “no século X fundou uma das primeiras universidades do mundo”. Nesse sentido, é interessante perceber não só como os dilemas de Nadia entre os universos culturais de França e Marrocos são deixados para trás, mas também como a própria presença masculina vai esmaecendo ao longo da história. O conflito anunciado com o irmão Driss pela herança da casa é resolvido através da dinâmica edição da tunisiana Moufida Tlati, uma outra pioneira do cinema africano, que faleceu em fevereiro de 2021. Vemos Nadia conversar com a amiga advogada sobre a inequidade na divisão da herança da família — segundo a tradição patriarcal marroquina, o filho teria direito à metade da casa, e as duas filhas dividiram a outra metade —, porém, na sequência seguinte, há uma passagem de tempo, e depois tudo está resolvido.

A mesma tática é empregada na solução do relacionamento de Nadia com Jean-Philippe, namorado francês que vai a Fez para encontrá-la. A reunião dos dois é, na história, só mais um momento — belíssimo, por sinal — para a afirmação da identidade marroquina da protagonista. Após resistir ao contato com o namorado, ela aceita conversar no quarto do hotel em que ele está hospedado. Não ouvimos o diálogo a princípio. Vemos apenas o casal através do vidro da janela, que reflete a cidade, enquanto o som das mesquitas invade o quarto e a cena. Nadia caminha então para a janela, e diz a ele: “escute a atemporalidade do Islã”, emendando que é impossível que o francês entenda suas origens. É impossível que ele entenda sua opacidade, eu acrescento. Daí em diante, Jean-Philippe torna-se somente um amigo de cartas. Nadia escreve para ele, ouvimos seus pensamentos ao escrever, mas não sabemos de qualquer resposta dele pois, de fato, isso não importa.

O que importa é desmistificar a maneira estereotipada — negativamente — pelo qual as mulheres no contexto islâmico são percebidas, tanto pelo prisma do patriarcado, seja ele mulçumano ou não, como também pelo feminismo ocidental. Pois, como afirmam Ella Shohat e Robert Stam em Crítica da Imagem Eurocêntrica:

“Enquanto alguns documentários contemporâneos mostram reuniões exclusivamente femininas como espaço de resistência ao patriarcado e ao fundamentalismo, Porta para o Céu [tradução nossa], por outro lado, usa espaços exclusivamente femininos para enfatizar um projeto libertador baseado na reveladora história da presença feminina, profecia, poesia e criatividade intelectual, quanto revolta, poder material e liderança social e política.”

Porta para o Céu, nesse sentido, é também um filme pioneiro na afirmação de outras abordagens estéticas e narrativas da cultura islâmica. E aqui mais uma vez é Kirana quem aponta o caminho. Para que essa afirmação fosse possível, era preciso um deslocamento da rigidez e das intolerâncias que marcam os fundamentalismos. “As palavras de Allah são uma chave que abre tudo. Você deve ler e entender o Corão”, afirma Kirana numa das primeiras conversas com Nadia. Mais adiante no filme ela reforça ainda mais a multiplicidade de leituras do Corão como um caminho. Ou seja, o Corão é um só — assim como Allah — mas as possibilidades de leitura são variadas e, mais importante, há lugar para todes. Essa polifonia interpretativa encontra espraiamento no filme principalmente através das tradições Sufi, que vemos, por exemplo, nos rituais que acontecem no abrigo de mulheres, nos transes de Nadia e nas mensagens que chegam a ela através de sonhos — como o reencontro espiritual com o sábio Ba Sassi, figura importante que conhecera na infância.

Ainda que não seja um filme autobiográfico, muitas das questões que vemos em Porta para o Céu têm origem nas experiências da diretora Farida Benlyazid, também roteirista do longa-metragem. Em diversas entrevistas ela conta que o filme é inspirado por sua própria busca espiritual e pelo desejo de combater o que ela acredita ser nocivo para a vida das mulheres no Marrocos. Nascida e criada em Tânger — uma cidade que em seu tempo era poliglota e multicultural —, a diretora, que sempre foi uma amante do cinema, foi para a França em busca de formação profissional. Retornou à sua terra natal tempos depois de concluir os estudos, desiludida com as imagens patriarcais que dominavam o cinema hollywoodiano e com as limitações do feminismo francês na forma de lidar com as experiências de mulheres não ocidentais.

O filme foi realizado de maneira independente, em uma coprodução na qual Benlyazid mobilizou recursos de França, Tunísia e Marrocos, saindo do circuito da produção estatal centralizada no Centro Cinematográfico do Marrocos, que contempla historicamente em grande parte diretores homens. Essa dupla combinação — produção majoritária masculina e articulada ao Estado — é uma característica, aliás, que permeia as cinematografias da região do Magrebe.4 Apesar de Porta para o Céu ter circulado em festivais internacionais à época do lançamento — final dos anos 80, início dos 90 —, a diretora afirma que o filme, a princípio, destinava-se à população de seu país. Segundo Benlyazid, uma das coisas que mais a motivava era “reagir ao islamismo wahhabista” (leia-se ortodoxo e radical) que “começava a ganhar força naquele momento.” “Eu queria advertir aos jovens que o Islã, o nosso Islã, é sobre abertura, tolerância e amor. Que é preciso olhar mais profundamente, e não ficarmos limitados ao nível da palavra, do dogma”, diz Farida Benlyazid em conversa sobre o filme no final de 2020. 5

A palavra, portanto, é um elemento central na construção da história protagonizada por Nadia. Não só no que se diz, mas como se diz, nos idiomas utilizados. A opção de usar as línguas locais e não apenas o francês do colonizador, pode ser vista, claro, como um traço da descolonização presente em obras das primeiras gerações de realizadores e realizadoras do continente africano; no entanto, é também um elemento performativo que conecta (de forma mais próxima, ou distante) as pessoas dentro e fora do filme. Há nas línguas camadas singulares que nem a melhor legenda pode traduzir. Não é sobre o significado que estou falando aqui, e sim sobre as opacidades que, como disse no início desse texto, nos convidam a buscar formas de nos relacionar. Estão não apenas nos idiomas, mas também nas linguagens; estão não só no que dizemos, mas em como dizemos.

E nesse retorno espiralar às opacidades do filme, presentes na abertura interpretativa do Corão por Kirana, nas múltiplas línguas ali faladas e no tempo não linear (ou sempre no presente, segundo o sufismo) da trajetória de Nadia, retomo a questão da agência das mulheres, cujo caminho relacional talvez seja ao menos para mim um dos grandes desafios do convite ao deslocamento do longa-metragem. A travessia de Porta para o Céu proposta pelo olhar de Benlyazid anunciada como possibilidade para todes que tenham fé e a desejem convoca, no entanto, ao abandono de concepções fundamentalistas, sejam elas do Islã, do patriarcado (ocidental ou não) ou do feminismo. Assim, o ato de cruzar essa porta pode ser percebido como o estabelecimento de relações outras com as muitas encruzilhadas que Benlyazid nos proporciona. Sobretudo àquelas que cruzam nossas idealizações de um feminismo hegemônico. 

Um exemplo: muitas análises de Porta para o Céu apontam na última parte da narrativa um momento de fragilidade. Penso que o que deve motivar essas críticas são as sequências que ocorrem a partir da chegada de Bahia, última exilada que vemos ser acolhida no abrigo, que agravam as incompreensões que as singularidades aportam. Bahia é uma muçulmana que não pratica o Islã, e chega ao zawiya após um tempo na prisão. Ao ver Bahia com seus cabelos curtos, as roupas e os gestos menos marcados por traços de feminilidade que as demais mulheres na trama, meu imaginário deslocou-se para um devaneio: o de que a personagem trazia ali algum entrecruzamento queer para a trama, fazendo assim mais uma curva na complexidade já estabelecida. Ainda que ciente de que os códigos de feminilidade não abraçados pela personagem não se relacionam, necessariamente, com a sua sexualidade, confesso minha perplexidade quando Bahia afirma que vai “embora porque precisa de um homem”. Definitivamente não vi esse desenrolar chegando. Como também não vi chegar o gesto impactante de Nadia, que percebe naquele momento que deseja deixar a comunidade de mulheres e viver a paixão pelo jovem Abdekelrim. A protagonista casa-se com ele em seguida.

Pensando relacionalmente com as trajetórias de Nadia, em particular, e do filme como um todo, lembro-me aqui de uma história contada por Safi Faye, cineasta senegalesa — considerada a primeira cineasta do continente africano — numa entrevista para a revista Cahiers du Cinéma. Faye conta que na ocasião de uma mostra de cinema em Nova York, quando afirmara que não era “feminista”, viu um grupo de feministas deixarem a sala.6 Atravessar Porta para o Céu pode ser então o simples deixar-se afetar pela potência — e também pelas fragilidades — das histórias daquelas mulheres, em tela e por trás da tela, ainda que não encontremos em nossas experiências singulares algumas proximidades com as delas, que nos ajudem a compreender o que se passa. Celebrar opacidades não como algo transitório, uma espécie de preâmbulo da compreensão, e sim como o que de fato são, irredutíveis. E lidar com elas como nos for possível, sem abandonar irritadas a sala do cinema ou a tela de nossos computadores.

Referências

GAUCH, Suzanne. “Now you see It, now you don’t: transnational feminist spectatorship and Farida Benlyazid’s A Door to the Sky”. Camera Obscura (2009) 24 (2 (71)): 107–137.
GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Ann Harbor, The University of Michigan Press, 2019.
MARTIN, Florence. Screens and Veils. Maghrebi Women’s Cinema. Bloomington & Indiana: Indiana University Press, 2011.
SHOAHT, Ella. STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Notas de rodapé

  1. Ministrado pela primeira vez em 2016, durante uma série de sessões realizadas pelo FICINE (Fórum Itinerante de Cinema Negro) em parceria com a Cinemateca Africana da Maison de France (Cinemaison) no Rio de Janeiro, esse curso já experimentou diversos formatos e durações, tendo sempre como foco a formação de público para as cinematografias africanas e o estímulo à consolidação de um campo acadêmico de discussões.
  2. Ver Girish Shambu, “For a new cinephilia”, Film Quarterly (2019) 72 (3): 32–34.
  3. Traje tradicionalmente masculino que passou a ser usado pelas mulheres em suas saídas às ruas. É uma espécie de túnica que cobre todo o corpo e pode ter também um capuz.
  4.  Magrebe, que literalmente significa “pôr do sol” ou “ocidente”, corresponde à região noroeste da África, tendo algumas variações nas definições dos países que compõem a região. Aqui, estou considerando como Magrebe os países Tunísia, Marrocos e Argélia (deixando de fora Mauritânia e Líbia), por compreender que as dinâmicas cinematográficas transnacionais nos três países possuem diálogos e similitudes históricas que se articulam. Diferentemente do que se passa na Mauritânia e na Líbia.
  5.   Ver a conversa com a realizadora durante o festival Africa in Motion – 2020, disponível no Vimeo. Recomendo também a leitura do artigo de Suzanne Gauch citado nas referências, que diverge dessa opinião da diretora, e traz críticas ao filme justamente por uma visão estereotipada da cultura no país.
  6. Diz Faye: “Tout le monde dit que je suis féministe, mais non, je ne peux pas être féministe. Pourquoi ? Parce que je viens d’une société matriarcale où la femme a plus d’importance que l’homme. Mon village a été fondée par une femme. C’est une société matriarcale, matrilinéaire. Je suis née égale à l’homme, sinon supérieure. Nous ne sommes pas des femmes qui restent les bras croisés : on apporte le repas du midi, le mari apporte le repas du soir. Comment est-ce qu’on peut être féministe dans ce cas-là ? Quand j’ai présenté mon film à New York, les féministes américaines étaient là. Je leur ai dit : je ne suis pas féministe. Je viens d’une société où je suis supérieure à l’homme. Elles sont toutes sorties. On ne m’entraîne pas dans une idée ou un monde qui n’est pas africain. Je n’oublie jamais que je suis africaine.”. In Cahiers du Cinema, n°747, setembro de 2018.