Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

O QUE VEIO ANTES, O MONSTRO OU A SOLIDÃO?

Sempre me surpreendo quando o horror é tratado como um gênero apolítico e distanciado da realidade. Entendo que o uso de artifícios e metáforas para tratar dos nossos medos e ansiedades possam parecer um apelo a sentimentos poucos racionais, mas, observando os debates políticos, me parece que são justamente as emoções que mais têm ganhado adeptos de todos os lados da disputa. E isso não acontece só em eleições tão polarizadas quanto as que tivemos em outubro. Mesmo quando tomamos decisões a partir da razão, nos apegamos a nossas escolhas de forma apaixonada, procuramos pelos afetos que corroborem nossas convicções.

Falar sobre o irracional, o inconsciente, o que nos amedronta, isso não é se esquivar da realidade, é admitir e abraçar o fato de que somos movidos por forças mais complexas do que o pensamento lógico consegue abarcar. Como podemos dar as costas para um gênero que fala sobre o medo quando esse é o sentimento motivador de boa parte dos eleitores brasileiros? Alguns têm medo da ameaça comunista, outros das feministas, outros do fascismo, da misoginia, do racismo. Os medos existem de todos os lados, mas eles representam modos de ver, pensar e sentir muito diferentes e isso pode e deve ser examinado pelo horror. Onde nasce o medo? Quem são nossos monstros?

Já há algum tempo os monstros no cinema não são mais os mesmos dos filmes de horror do começo do século XX. Se antes eles representavam o perigo da floresta, o desconhecido, o Outro, os monstros têm estado cada vez mais próximos de nós. Eles têm sido protagonistas, heróis e anti-heróis, interesses românticos, amadas criaturas em animações infantis. A monstruosidade que diferencia os corpos aceitáveis daqueles que não o são, essa monstruosidade é algo que muitos de nós compreendemos. O corpo negro, o corpo gordo, o corpo queer, o corpo insubmisso da mulher, corpos que se atrevem a existir apesar da constante ameaça de apagamento e extermínio, esses corpos compartilham uma inadequação num mundo repressivo e conservador que encontra muitos paralelos nos monstros. E enquanto a forma monstruosa tem sido vista por uma luz cada vez mais positiva no cinema, nossos medos têm se voltado cada vez mais para nós mesmos. Como escreveu Angela Carter, ‘os piores lobos são peludos por dentro’.

Quando falo de um medo voltado para nós mesmos, não me refiro apenas a questões do indivíduo, mas a movimentos estruturais da sociedade de que fazemos parte e que mantemos em funcionamento. O medo voltado para nós mesmos diz respeito a nossa solidão, nossas doenças mentais, nossa desconexão, mas esses são apenas sintomas de um problema maior que se relaciona menos com o indivíduo e mais em como se organizam as relações humanas na contemporaneidade.

No curta-metragem da diretora Gabriela Amaral Almeida A Mão que Afaga, uma agente de telemarketing prepara a festa de aniversário de nove anos do filho. As referências ao horror na linguagem do filme causam um desconforto que provoca mais riso que medo, a inaptidão social de Estela (interpretada por Luciana Paes) assim como a iluminação dramática das cenas do apartamento apontam para o horror e o absurdo do cotidiano com um humor ácido. O verdadeiro pavor para mim, entretanto, está nas cenas de Estela no trabalho, onde vemos vários rostos e vozes indistintas que ligam para pessoas que nunca conhecerão, pessoas que se sentem no direito de hostilizar e humilhar os agentes de telemarketing porque esqueceram que existem pessoas com sentimentos do outro lado da linha. A busca por conexão de Estela é cômica, trágica e dolorosamente humana. Essa humanidade, tão frágil e tão rara, é também o que se perde e o que se procura no mais recente filme de Almeida, A Sombra do Pai, exibido no Festival de Brasília deste ano.

O longa é marcado por ausências. Dalva de 9 anos tem que lidar com a ausência da mãe que faleceu, a iminente ausência da tia que vai casar e deixá-la e a ausência do pai que está sempre trabalhando. A ausência de Jorge, o pai de Dalva, como bem ilustra o título, deixa uma sombra: seu corpo. Depois do cadáver da esposa ser exumado, ao invés de ir para casa lidar com seu luto, Jorge volta ao trabalho. Depois que sua irmã deixa sua casa, ao invés de ficar com a filha, Jorge volta a trabalhar. Jorge não é mais uma pessoa, é uma máquina, um corpo que não processa dores ou alegrias, apenas trabalha ininterruptamente até adoecer e esquecer que um dia foi gente.

Se os zumbis de George A. Romero representavam as massas consumistas e descerebradas caminhando em direção a shoppings em grandes grupos, o zumbi de Almeida é solitário, ao invés de consumir, ele apenas produz, não lhe falta o cérebro e sim sua alma. Mais que a ausência material, o que se sente é a perda dos afetos, enquanto Jorge continua seu interminável trabalho maquinizado e hostil, o trabalho emocional que exigimos que as mulheres exerçam não pode ser executado, as mulheres se vão, morrem, fica Dalva, ainda menina e relegada a carregar todo o peso desse trabalho ingrato. Ela é capaz de fazer algumas tarefas de casa, mas precisa conjurar forças sobrenaturais para suprir suas carências mais profundas.

Para Dalva, os filmes de horror de madrugada, a trança de sua mãe morta, suas pequenas bruxarias, é ali que ela encontra algum grau de controle no mundo. Seu conforto está no que se convencionalmente atribui um caráter repulsivo, trata-se de uma estranheza familiar, uma conexão com o irracional e o abjeto que a mantém mais próxima da humanidade do que o mundo civilizado e industrial de seu pai é capaz. E não é essa uma das grandes contradições da contemporaneidade? Quanto mais nos agrupamos em cidades gigantescas, mais solitários nos sentimos. Quanto mais próximos do mundo construídos pelos homens, mais longe nos encontramos da nossa humanidade. Existem horrores piores que bruxas, fantasmas e mortes sangrentas: o vazio intransponível que existe entre uma pessoa e outra.