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A IMPORTÂNCIA DE REPRESENTAR A SI MESMO: CAMP DE THIAROYE

Outro dia fui assistir a um filme no Netflix sobre um homem de 84 anos que tenta entrar na escola primária para aprender a ler, chamado O Aluno. O filme parecia ser uma bela e leve história sobre resiliência e sonhos, mas se passa no Quênia, e, para os ocidentais, parece impossível filmar algum lugar na África sem mostrar algum tipo de guerra civil ou tragédias similares. Claro que isso fez parte da história recente de muitos países africanos, e alguns ainda passam por conflitos turbulentos. Mas essa obsessão por apenas representar as atrocidades passadas no continente cai no alerta do que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie chama de “o perigo da estória única”.

Só de cabeça consigo lembrar de vários filmes desses: Hotel Ruanda, Beasts of No Nation, Diamante de Sangue, O Último Rei da Escócia, O Jardineiro Fiel, O Senhor das Armas. Todos contribuindo para o imaginário colonialista da África como um lugar selvagem e sem lei, nos dividindo entre temor e pena de seus habitantes. Mas filmes sobre a África do ponto de vista de um africano é algo raro de se ter acesso. O senegalês Ousmane Sembene foi um dos poucos cineastas com destaque internacional, e seu filme de 1988, Camp de Thiaroye, fala também sobre guerra, mas sob o ponto de vista de soldados africanos que lutaram pelo exército francês na Segunda Guerra Mundial, o que muda bastante a perspectiva da história.

Primeiro, somos levados a nos identificar com os soldados e nos indignar junto a eles pelo tratamento que sofrem, ao invés de adotarmos um tom complacente, de pena, ou nos identificarmos com algum heroi branco que vai ajudá-los (ausente neste filme). Os soldados vieram de vários lugares da África, e, após participarem de batalhas na Europa, estão agora reunidos no Senegal em um acampamento militar, esperando a autorização para voltarem a seus países de origem.

O personagem central é Aloys Diatta, um sargento que conhece bastante da cultura europeia. Ele aprecia música clássica, jazz americano, fala inglês e francês fluentemente, e é casado com uma francesa. Isso lhe dá uma posição privilegiada na diplomacia entre os soldados e os oficiais franceses que comandam o acampamento, o que o leva a se tornar líder mais tarde. Entretanto, ele vive dividido entre o amor por sua pátria e sua paixão pela Europa. Ao mesmo tempo em que rejeita o casamento que sua família tenta lhe arranjar e quer retornar à França para viver com sua esposa francesa, ele também deseja morar no Senegal e combater a exploração europeia.

O filme mostra como os soldados foram recrutados à força, pois na época várias nações africanas ainda eram colônias. Os oficiais tratam a todos como se fossem a mesma coisa, ignorando suas diferenças e seus locais de origem. O soldados dão o troco em uma das cenas mais importantes do filme: em um certo momento, são ordenados a trocar o uniforme americano que lhes foi emprestado e vestir o senegalês, muito mais simples, e que lhes tira o prestígio de se sentirem importantes como os americanos. Um dos soldados diz “os americanos nos deram os uniformes, os franceses os tomaram de volta. Passamos 4 anos na Europa, dormimos e comemos junto a cadáveres, comemos da mesma carne. Lutamos junto com os europeus.” Ao que outro responde: “E daí? Americanos brancos, franceses brancos, ambos são exatamente iguais. Não somos americanos nem franceses, somos africanos.”

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Enquanto vários dos soldados se levantam e questionam uns aos outros do porque se sentirem tão tristes ao vestirem o uniforme senegalês, um deles olha para a câmera e fala diretamente com o espectador: “Porque está tão triste? Você não desonrou sua família”. Nos tratando como um deles, fica claro com quem devemos nos identificar. Não há um personagem branco que se junta a eles e os ajuda, como nos filmes de hollywood dirigidos por estrangeiros, nem há tom benevolente neste filme. Somos levados a enxergar a opressão do ponto de vista de quem a sofre, e aí está a essencial diferença.

Uma cena anterior inclusive revela a importância do uniforme, quando Diatta vai a um bordel e é bem atendido, por pensarem que é americano. Mas, assim que ele faz um pedido e descobrem se tratar de um senegalês, é expulso do estabelecimento. Diatta não pode frequentar lugares dentro do seu próprio país. No acampamento, eles são servidos comida estragada, e os oficiais também adiam eternamente o pagamento dos salários. Quando a situação se torna insustentável, eles se rebelam e sequestram um dos oficiais. Prometendo resolver os problemas, o oficial é liberado, mas os surpreende com vingança na calada da noite. E o mais triste desta história é que foram acontecimentos reais.

Sembene por um momento até parece mostrar uma representação balanceada dos oficiais franceses. Enquanto a maioria deles é cruel e impiedoso, um tenente parece apoiar os soldados e defende o pagamento de seus salários, o que o leva até a ser hostilizado pelos outros oficiais. Entretanto, a cena final do filme mostra o mesmo tenente recrutando mais soldados para novas batalhas, indiferente à violência destinada aos soldados rebeldes do Campo Thiaroye. É aí que a mensagem de Sembene fica clara. Numa subversão ao que os europeus e americanos sempre mostraram com seu cinema sobre a África, não importa o quão piedoso e compreensivo o colonizador possa parecer. No fim das contas, eles são todos iguais.

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Felizmente o cinema de Ousmane Sembene está disponível na internet! Existe até um canal do youtube que reúne alguns de seus filmes legendados em português. Outros também estão disponíveis com legendas em inglês, como Moolaade, e Faat Kiné.

Aproveitem, pois é uma raridade conseguirmos ter acesso a obras como essas, e precisamos urgentemente falar mais sobre cineastas importantes como Sembene, principalmente por seus filmes tratarem de temas políticos ainda tão relevantes no mundo atual.