Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

IMAGINAR O PRAZER E OS FILMES QUE NÃO FIZ

Filmes são coisas a serem feitas, e eu, que já construí artefatos muito concretos para filmes – entre casas de senhoras solitárias, abajures para adolescentes sonhadoras e naves espaciais para guerreiros intergalácticos – quando me vejo diante da possibilidade de realizar um filme a partir do zero começo a me debater em meio a ideias profundamente etéreas. Meio fio, meu primeiro curta, nasceu da minha vontade de filmar a solidão feminina, da minha experiência com a cidade e da minha profunda crença de que elas podem, por meio do cinema, se tornar uma só. Meio fio era só um nome dado ao bloco de concreto que delimita a rua e a calçada. E era também o lugar onde Karine e Flávia se sentavam para conversar. Ao mesmo tempo, o que é a metade de um fio se não outro fio? É a metade de algo que sempre se torna um. E isso pra mim tinha a ver com a solidão.

Tem muita coisa que acontece enquanto se faz um filme e também depois que ele passa a existir na sala de cinema. Pra mim era um filme sobre a solidão e eu queria que as pessoas vissem na personagem uma mulher autônoma. Mas também, esse espaço da solidão era o espaço da fantasia, onde se rememora e se projeta a relação com o outro. Quando o filme começou a circular, eu conversava com muita gente que se identificava e se emocionava com o sentimento que expusemos ali. Ouvi muitas vezes que era um filme “voltado para o público feminino”. Mas percebi também que as fantasias românticas narradas pela personagem provocavam riso em algumas pessoas. Isso aconteceu pela primeira vez quando passei o filme em uma escola, e pensei, bom, adolescente sempre ri de nervoso. Mas aí eu comecei a ver gente adulta rindo e pensei: é, tem alguma coisa aí.

Eu penso muito nessa ambiguidade que eu via na reação das pessoas ao se deparar com aquela intimidade feminina exposta na forma dos relatos de Karine Bahn, e é um pouco sobre isso que quero escrever aqui. Acho que há algo que surge dessa relação que a gente estabelece, enquanto espectadores, com essas imagens que desconcertam, que fazem a gente sentir um pouco de vergonha, ou que chacoalham com um certo “gosto” do que é o bom cinema. Acho que é um pouco o que os filmes de Douglas Sirk provocaram e ainda provocam. Ou o que talvez filmes como Inferninho e Sol Alegria colocam hoje, de maneiras muito diferentes. Ou até o que criou uma certa resistência, por exemplo, em torno da pornochanchada brasileira.

Então, uma forma de falar sobre isso com vocês é puxar impressões sobre filmes que assisti, alguns mais de uma vez, e que de alguma forma falam dessa intimidade feminina e provocam as nossas percepções sobre ela. Mas é bom falar que esse não é um texto que pretende fazer análises formais ou estabelecer coerências entre um corpo de filmes. Não tenho essa pretensão crítica, e assumo até uma certa dificuldade em fazê-lo. Quero falar sobre os filmes a partir da ótica de quem os assiste porque quer fazê-los. Falar como se conversa sobre eles na mesa de bar, na saída do cinema, nessa coisa que também faz parte da experiência coletiva que é o cinema. Experiência da qual hoje estamos apartadas. Não só pela impossibilidade de entrar e sair da sala de cinema, mas também porque tudo indica que o contexto geral de produção e de fruição do cinema está sendo desenhado para que essa experiência definhe. 

Eu penso que vivemos uma guerra contra a imaginação. Qualquer experiência de invenção de mundos que enfrente o atual estado de coisas está sendo deliberadamente polida. Tomando isso para o cinema, eu acho que podemos pensar na imaginação tanto como aquela que dá substância ao filme, que provoca o seu estado de espírito; como aquela presente na experiência de se estar acompanhada do filme na sala de cinema, com ele projetado de forma que a gente se sinta miúda diante da tela, permitindo que nossa mente produza derivação e prazer.

Atravessada pela necessidade de fazer filmes, e ao mesmo tempo, pela completa impossibilidade que se coloca neste momento, tanto de fazê-los como de dividir espaço com eles na sala de cinema, escrevo pela necessidade de colocar essas ideias para circularem. Pode parecer, mas isso aqui não é um texto de lamentações. Eu quero devanear sobre filmes que não fiz, cogitando que pode interessar a alguém dividir isso comigo, e desejando ferozmente que esses filmes venham a existir.


A pergunta que eu me faço há algum tempo é de como a capacidade de invenção do cinema pode provocar a nossa imaginação acerca daquela intimidade feminina. Se a gente pensa na intimidade como algo que está guardado, trata-se de trazer para a tela algo que não é visível. Essa intimidade, esse universo oculto que me interessa, guardado como segredos em um diário, é um universo povoado pelo desejo, pela fantasia, pela sexualidade e, simultaneamente, por todas as forças que tentam mantê-los ocultos. O que me interessa é buscar como esse universo sensível e invisível vai tornar visíveis nos filmes as múltiplas experiências do prazer feminino.

Acho que um começo pode ser perguntar como agem essas forças que procuram manter oculta essa experiência do prazer, e porque ela em si pode ser tão ameaçadora. Em Possessão (1981), eu vejo essa ameaça no olhar que Mark (Sam Neill) lança para Anna (Isabelle Adjani) na cena em que ela se entrelaça ao monstro-amante.1 Embora o filme aparentemente diga o contrário, o conflito de Anna para mim não é com os dois homens entre os quais ela está dividida – o marido e o amante – mas sim com o monstro que a possui. “Eu não posso” ela repete, ao mesmo tempo que diz “preciso ir”, enquanto vai ao encontro do monstro, apesar do muro, apesar dos carros que despencam à sua frente. Ele a espera, ela cuida dele. Ele a possui, ao passo que a enlouquece, mantendo-a dividida entre a fé e o acaso, “essas duas irmãs”. Na cena a que me refiro, Anna está envolvida pelos diversos tentáculos do monstro, ele a penetra, ela olha para Mark e diz: “quase…. quase, quase, quase”. Mark, aterrorizado, apenas diz “sim” e foge, incapaz de lidar com aquela cena. Depois, ele quer salvá-la, mas também quer matá-la e quer morrer. O monstro que possui Anna é a sua própria experiência do prazer, inapreensível para os dois homens com os quais ela se relaciona e, principalmente, para ela mesma.

Essa experiência do prazer tornado horror eu vejo também em Trouble Every Day (2001)2 com esse título que sugere a persistência de um problema dia após dia. O desejo pulsante em Cloé (Béatrice Dalle) é uma doença. Tanto ela quanto Shane (Vincent Gallo), seu amante do passado, são acometidos da mesma doença, aparentemente incurável: a experiência do prazer sexual leva-os a canibalizar seus parceiros até a morte. Shane é atormentado pela culpa, e nele eu vejo uma racionalidade que não vejo em Cloé. Enquanto Shane resiste ao seu desejo pois sabe que ceder a ele significa matar sua esposa June (Tricia Vessey), o desejo de Cloé é visceralmente mais potente e incontrolado, atuando como uma força centrípeta e fatal. Quando finalmente encontra Cloé, Shane a mata e, neste ato, me convenceu de que ele a via como provocadora de sua condição. A cena imediatamente seguinte a que Cloé arde em chamas é a de Shane transando com June, como se acreditasse na sua cura a partir da morte de Cloé. 

Existe nesses dois filmes um ímpeto de exterminar aquilo que dá prazer e, simultaneamente, atormenta. Pode ser uma potencialização desse desconcerto que causa a experiência visível do prazer feminino: uma experiência tornada monstro. Na construção do filme de horror, é preciso criar um monstro no qual a gente acredite, e para acreditar é preciso temê-lo. E quanto mais tememos, mais forte ele se torna.


Tenho medo da vida! Às vezes eu fico aterrorizado. Qualquer felicidade parece trivial. E, no entanto, me pergunto se tudo não passa de um engano… essa busca da felicidade, esse medo da dor. Se em vez de temer a dor e fugir dela, se pudesse… atravessá-la, ir além dela. Há algo além da dor. É o ser que sofre, e há um lugar onde o ser… acaba. Não sei como expressar. Mas acredito que a realidade… a verdade que eu reconheço no sofrimento, mas não reconheço no conforto e na felicidade… que a realidade da dor não é a dor. Se for possível atravessá-la. Se for possível suportá-la até o fim”, disse Shevek3 em Os Despossuídos, de Ursula Le Guin. O que nosso instinto primordial nos diz é: evite a dor, fuja do monstro. Filmes, fábulas e parábolas foram contados para nos fazer acreditar que é possível superar a dor e, depois dela, alcançar o júbilo, o céu, a recompensa. 

Para Lilian, ou Maria, ou Célia (Célia Olga), em Lilian M: Relatório Confidencial (1975) essa recompensa nunca chega.4 A cada relacionamento ela vive tudo o que pode viver, mas subitamente passa para outro, como que entregue ao acaso das circunstâncias. Os cortes do filme não permitem fechar um julgamento moral acerca de Lilian, apenas acompanham seu movimento, que é sempre de viver uma experiência e passar para a próxima.

Uma cabeça treinada para procurar propósitos vai se perguntar pelo quê ela está procurando. E essa mesma cabeça aí poderia tornar essa personagem opaca, desinteressante. Mas aí acontece uma cena, que fica voltando em looping na minha cabeça sempre que assisto ao filme, ou quando lembro dele. Lilian encontra Braga (Benjamin Cattan) em um restaurante. Ele é o seu primeiro amante na cidade, um homem rico, casado e que a mantém. Ele fala sem parar. Lamenta-se das agruras de ser um homem poderoso, com tantos empregados que não enxergam a bondade que há nele. “Eu poderia privá-la da minha amargura, mas eu nunca tive tempo de ir ao neurologista. O único preço por tudo que eu lhe fiz, foi você sempre me ouvir sem refutar ou concordar. Sua mudez, ou quem sabe, a sua ignorância, são elementos altamente terapêuticos para mim. Minha primeira mulher sempre foi minha confessora, até o dia do parto do Fausto…”. Lilian desliga-se e olha para o nada enquanto ele despeja sobre ela toda essa chatice. Subitamente, o salão do restaurante é invadido por dançarinos, vestidos com roupas coloridas, que dançam em volta da mesa e por trás deles. A câmera lentamente se aproxima do rosto dela, e é como se os dançarinos e a música fossem as voltas que sua mente dá enquanto ouve todo aquele blá blá blá. Aquela poderia ser sua mudez ou sua ignorância, como Braga diz. Mas aí vem o cinema e, à mudez e à ignorância, opõe a imaginação e o desejo.

Um de seus amantes vai oferecê-la um trabalho em um bordel. A primeira pergunta que a cafetina faz a ela é: “Você sabe dançar mambo, meu bem?”. Seguem-se cenas da cafetina fantasiada, encenando diversos estilos musicais a Lilian: rumba, conga, ula-ula, etc. Lilian se empolga, é como se naquele momento estivesse vivendo a fantasia construída enquanto conversava com Braga. O filme não entra muito nisso, assim como Lilian não entra muito em nada. Mas essa cena pra mim diz muito sobre a disponibilidade de Lilian de performar diversos papéis, e o prazer que encontra nessa busca que a gente não apreende, se transformando numa personagem fugidia, incapturável, assim como é o próprio desejo.

O acaso que atormentava Anna é o que conduz Lilian. Ela escolhe não ceder à fé: é a primeira que ela abandona quando deixa o marido e os filhos no início do filme. Mas nessa propulsão de Lilian existe um instinto ou uma necessidade de sobrevivência, e é esse instinto que coloca a experiência do prazer em contato com a experiência do mundo, de seu território e das regras que constrangem a existência. E o prazer acaba entrando nesse jogo, delimitado entre a disposição para ceder ou transgredir essas regras.


Uma vez eu estava em um bar aqui na Ceilândia e fui ao banheiro. Quando empurrei a porta, percebi que tinha uma pessoa dentro e recuei. A mulher que estava lá abriu a porta e me falou que eu podia entrar. Era um banheiro pequeno, só cabíamos nós duas lá mesmo, eu fazendo xixi e ela na pia. Começamos a conversar. Ela me disse que trabalhava na Império, mas que tinha ido nesse bar hoje porque estava procurando uma menina pra substituir ela lá. Queria mudar. Comecei a entender o que ela estava querendo me propor. Ela me perguntou se eu já tinha feito programa, eu disse que não. Ela disse que era de boa, que eu ia me acostumar. E que ela começou porque era assim: “Eu pegava um cara num final de semana. Aí quando era no outro final de semana tava lá o mesmo cara com um amigo. E dessa vez, o amigo dele é que queria me comer porque sabia que eu já tinha dado pro outro. Aí é melhor cobrar, né?”. Ela disse que eu ficasse tranquila, olhou pras minhas roupas e disse que se eu topasse ela ia no shopping comigo pra gente ver umas roupas novas. Eu disse que ia pensar, ela disse que se eu topasse era só aparecer de novo lá na próxima sexta.

Nunca mais essa proposta saiu da minha cabeça. Estava ali, um dos caminhos. E é só mais um deles, eu pensei, assim como Lilian pensou. A prostituta, que penso aqui como personagem, estabelece um outro jogo com o prazer que é o da relação produtiva. Nele, é preciso se usar da fantasia e do desejo de maneira pragmática, tornando-o mercadoria negociável. O bordel de luxo em Palácio de Vênus (1980) é construído como uma fábrica.5 Ali estão todos os componentes da linha produtiva, o patrão, os operários, o valor da jornada de trabalho, as disputas por hierarquias, tudo permeado pelo pragmatismo necessário para que o sistema opere. Logo no início do filme, Madame Carlota (Elizabeth Hartmann), dona do bordel, diz a Dolores (Arlete Montenegro), enquanto esta coloca dinheiro em um envelope para enviar à filha distante: “Cê não tá pensando no seu futuro, mulher. Eu sei que mãe é mãe. Mas o tempo passa, a gente envelhece, e depois? Lembre-se que somos como máquinas! Máquinas de abrir as pernas e nhec nhec nhec”. O recado dela é claro: não há espaço para pensar outra vida que não essa. E é essa a fatalidade que vai determinar o trágico fim do filme.

A experiência do prazer na cabeça de Madame Carlota precisa ser formatada para a venda. A imaginação tem lugar como produto que atende a uma demanda, assim como faz um publicitário, vamos dizer. Mas onde há subordinação há também resistência e invenção: as prostitutas resolvem fazer uma greve, insatisfeitas com o alto percentual retido pela patroa. Elas se recusam também a aderir ao moralismo da prostituta católica, que tenta reconduzi-las ao caminho do senhor. Mas ela mesma é uma figura ambígua: a portas fechadas, leva ao extremo a fantasia do êxtase cristão com seu amante coroinha.

Acho que a prostituta é uma personagem que me provoca porque me coloca diante da nossa mais profunda ambiguidade. Ela é marcada de forma escancarada por esse estigma puritano que leva à condenação do corpo feminino e a possibilidade de se manipular e formatar a experiência do prazer, mesmo que seja para vendê-la. Ela me faz olhar o monstro de frente, provoca o meu moralismo, me jogando no embate entre a fé e o acaso.


Olhando para o motim das prostitutas no Palácio de Vênus, eu me pergunto: como fazer para resistir a esse estado de coisas que nos é imposto, que nos pretende máquinas de nhec nhec nhec tanto quanto máquinas de produzir filmes? Eu acho que os filmes não precisam responder a nada, o cinema não salva nem nunca salvou ninguém. Ele está inserido no mesmo jogo pragmático que Madame Carlota expõe a Dolores em Palácio de Vênus. Mas é a potência do cinema em tornar o invisível visível e de jogar com os sentidos que pode estabelecer resistências à pasteurização na nossa forma de olhar, imaginar e produzir nosso prazer. E eu acho que essa potência passa por se entregar um pouco como Lilian à incerteza do que se quer, mas também à percepção clara de que essa experiência do prazer não depende de um clímax, mas de algo que acontece em muitas camadas, que depende de inúmeros contatos e que se espalha como lava de vulcão ao tomar a superfície, pesando que a gente pode ser lava.

Eu penso incessantemente nisso, e é essa obsessão que me faz escrever esse texto agora. Escrevo pois acredito na capacidade da palavra tanto quanto na capacidade do cinema de produzir contato, à semelhança do que Claire Denis faz com seu olhar rente à pele; ou de como Naomi Kawase faz a gente respirar junto com as personagens; ou de como Paula Gaitán faz a gente ouvir os filmes dela. Mas existe um contato e um encontro entre quem realiza para que os filmes aconteçam e resistam, mesmo para construir naves espaciais. Os filmes que ainda não fiz são filmes que querem imaginar o prazer como enfrentamento, acreditando no próprio enfrentamento em se fazer filmes e na profunda necessidade de que eles existam.

48º FBCB – QUINTAL + AFONSO É UMA BRAZZA

O quinto dia do Festival de Brasília merece um destaque especial, não apenas pelos filmes exibidos na noite de sexta-feira, mas também pela manifestação política que se deu durante a fala do diretor pernambucano Cláudio Assis. Depois do seu papel no episódio lamentável envolvendo a diretora Anna Muylaert no cinema da Fundação em Recife, o público brasiliense demonstrou sua revolta contra a misoginia do diretor com vaias e gritos de “machista”. Ficou claro, entretanto, que o público separou o diretor da obra ao aplaudir entusiasticamente o ator Matheus Nachtergaele quando este tomou a palavra.

Dos filmes exibidos no dia 19 de setembro escolhemos focar especialmente nos curta-metragens (considerados média-metragens pelo Festival de Brasília) Quintal, do mineiro André Novais, e Afonso é uma Brazza, produção brasiliense dirigida por Naji Sidki e James Gama.


Quintal

O filme Quintal de André Novais conta a história de um dia comum na vida de um casal de idosos que vive na periferia de Belo Horizonte. O filme é estrelado pelos pais do diretor, os carismáticos Maria José e Norberto Novais, que também protagonizaram o longa do filho, Ela Volta na Quinta. A Filmes de Plástico, produtora de Novais, também produziu outro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília, o Rapsódia para o Homem Negro de Gabriel Martins.

Entre ventanias inexplicáveis e telefonemas misteriosos de políticos envolvidos em escândalos, é impossível não se afeiçoar ao adorável par de velhinhos que levam todas as situações absurdas como parte do seu cotidiano. O nonsense e a fantasia se misturam no média-metragem de Novais, demonstrando uma aguçada habilidade para o humor comprovada pelas risadas e palmas do público. É intrigante, entretanto, pensar de onde vem esse riso. Viria ele das situações inusitadas ou do fato de quem as vivem serem uma senhora negra e seu marido? E se esse for o caso, o que isso diz sobre o público do filme e das nossas expectativas?

Além do Festival de Brasília, o Quintal fez parte também da seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e não é muito difícil de entender por quê.


Afonso é uma Brazza

Afonso Brazza é, sem sombra de dúvidas, um mito do cinema brasiliense. Com oito longa-metragens realizados antes de sua morte aos 48 anos, nada mais justo que ele fosse homenageado pela arte que ele tanto amava.

A maior ironia de assistir Afonso é uma Brazza ser ovacionado no Cine Brasília durante o Festival de Brasília do cinema brasileiro é que nenhum dos filmes dessa figura mítica jamais foi selecionado para o festival quando ele era vivo. O documentário, que mistura imagens retiradas diretamente de seu penúltimo longa-metragem, Tortura Selvagem – A grade, making of do mesmo e entrevistas, possui uma leveza e humor tornam o filme uma experiência divertida, mas que é assombrada por essa consciência.

Os filmes de Afonso Brazza, com seu sangue falso, suas dublagens e histórias mirabolantes nunca foram levados a sério pelo Festival, mas o que alicerça todas as produções era coisa séria, sim: um profundo e genuíno amor pelo cinema. Amor este que levava Brazza a atuar, dirigir, montar, produzir, usar película vencida para filmar, fazer sangue falso a base de cola, corante e café. O filme podia muito bem cair na armadilha de explorar risada às custas de Brazza, ridicularizando sua ingenuidade, mas não é isso que acontece e assim que o filme ganha em profundidade.

O filme faz jus ao seu protagonista, trata-o com o respeito e não como um excêntrico, e, 12 anos após sua morte, conquista o reconhecimento que nunca lhe foi dado pelo Festival de Brasília.

AMOR AO CINEMA E RECONCILIAÇÃO FAMILIAR: O ÚLTIMO CINE DRIVE IN

O primeiro longa-metragem de Iberê Carvalho foi exibido em sua pré-estreia no próprio cine drive-in do título do filme, o que deve ter sido uma experiência metalinguística incrível. Perdi esse momento, mas assisti no Cine Brasília, outro patrimônio da capital. E é muito bom ver filmes da cidade ganhando espaço e reconhecimento nacionais.

O filme conta a história de Marlombrando, que volta de Anápolis para Brasília, para internar sua mãe doente. Sem ter onde ficar, acaba indo atrás do pai ausente, Almeida, dono do quase falido (e real) cinema drive-in da cidade. Almeida é um apaixonado por cinema, como o nome do filho e os muitos pôsteres de filmes na parede evidenciam. Porém, Marlombrando não tem muitos afetos por Almeida, inclusive o chama pelo nome em vez de “pai”. Fugindo do melodrama ao qual a narrativa parece se direcionar, os conflitos nunca ficam totalmente explícitos, nunca sabemos exatamente os fatos que aconteceram no passado dos dois, o que é uma decisão acertada. Ficamos sabendo apenas de alguns detalhes mostrados através dos diálogos.

A mãe doente, Fátima, está internada com um tumor no cérebro, e infelizmente não tem participação maior além de servir como mote para a ação do protagonista. As poucas cenas em que ela aparece são momentos entre ela e o filho, onde ela conta histórias nostálgicas sobre a infância dele. Sim, há vídeos de infância em sépia, que Almeida fica assistindo em seu projetor, há historias contadas pela mãe para adocicar o coração dos espectadores, há um certo esforço de trazer uma atmosfera afetiva e nostalgica, no estilo Cinema Paradiso, que aliás fica mais do que evidente pelo pôster do filme que aparece em close atrás dos personagens em algumas cenas. Aliás, talvez os pôsteres de Cinema Paradiso e de O Poderoso Chefão na parede de Almeida tenham ficado um pouco redundantes. Apesar de fazerem sentido dentro da estória, as referências a eles já estão mais do que claras no filme. Esses elementos mais clichês, porém, são balanceados pela montagem um tanto seca, que em certas horas agrega ao filme, mas outras horas nem tanto.

Quanto à estória, ela possui um potencial de dramalhão do qual o filme felizmente foge: reconciliação de pai e filho, doença terminal, ressureição do cine drive-in. Porém, talvez o filme tenha fugido tanto em busca de amenizar os clichês da narrativa, que algumas coisas tenham ficado secas demais. A história tem pano pra manga, mas, mesmo com a duração já sendo bem pequena – 98 minutos – o filme tem várias cenas em que nada acontece, como quando Marlombrando volta para Anápolis, só para retornar logo em seguida. Há muitas escolhas estranhas de montagem também, como alguns planos de Fátima moribunda no hospital, que não casam com as sequências anteriores nem seguintes, parecem planos jogados ali no meio sem saber direito a que vieram. Marlombrando também parece um personagem meio inócuo, que não evolui muito ao longo do filme, mesmo sua estória tendo um arco claro no roteiro. Não sei se isso se deve à atuação de Breno Nina ou a escolhas de direção, mas o protagonista permanece emburrado durante o filme inteiro, e brilha somente em alguns momentos pontuais, como na briga com o pai dentro do carro. Já Othon Bastos como Almeida, e Chico Santana como Zé (o bilheteiro do cine drive-in) estão excelentes, atuam com uma naturalidade incrível. Há grande potencial para o público empatizar com Almeida, sendo o cara excêntrico que é, em busca de reconciliação com o filho, e a atuação de Othon Bastos lhe confere muita humanidade. Porém, ele também termina o filme passando uma sensação de que poderia ter ido mais além, faz falta alguma cena em que possamos ver mais de suas emoções. Não que uma cena de reconciliação entre pai e filho fosse necessária, acho até que iria cair nos velhos clichês de sempre, mas algumas cenas a mais em que pudéssemos entrar mais fundo nos sentimentos de Almeida e Marlombrando seriam bem-vindas.

Uma personagem interessante do filme é Paula, interpretada por Fernanda Rocha. Ela é uma espécie de faz-tudo no drive-in, dando conta desde a projeção dos filmes até os lanches servidos, e tem uma personalidade forte, responde as pessoas na lata e não mede palavras. Porém, o tratamento dado a ela me incomodou várias vezes. Quando Marlombrando chega e não aceita dormir no quarto do pai, Almeida expulsa Paula de seu próprio quarto para dar lugar a ele. Ao longo do filme vemos repetidamente Almeida e Marlombrando destratarem Paula, como quando ela dá opinião sobre a situação que Marlombrando causou depois de chegar, e é recebida com um ríspido “da minha família cuido eu!” vindo de Almeida. Marlombrando desdenha de Paula várias vezes também, inclusive na cena ápice do desrespeito, quando encontra Paula numa rua, indo embora, e a impede de prosseguir. Ele a puxa pelo braço, grita com ela, e apela para o plano deles de reviver o cine drive-in, como se a vontade dela de ir embora não passasse de birra, e ainda por cima fosse alguma forma de traição por abandonar o plano. Paula finalmente cede e resolve voltar, e mais tarde é recebida por Almeida com um “você ia embora sem me dizer, sua pilantra?” de brincadeira, ao que ela responde “se me maltratarem vou embora”. Claro que isso é tratado como um momento engraçadinho pelo filme, pois acabamos de ver que Paula não vai embora coisa nenhuma, então a ameaça dela não é realmente levada a sério por ninguém, nem por eles nem pelo público. A intenção do filme é romantizar essas relações hostis “de família”, de destrato com viés cômico, que entretanto acontecem assimetricamente, tendo como Paula o saco de pancada do filme. Uma coisa legal é que ela está grávida, e isso é tratado com naturalidade, sem ninguém chamando atenção para isso todo o tempo, salvo uma hora em que Marlombrando pergunta a Zé se o filho dela é de Almeida (a coitada não é respeitada hora nenhuma e ainda acham que ela está dormindo com o velho!).

A cena final é legal – alguns spoilers a seguir! – onde sequestram a mãe do hospital para que ela possa ver a renovação do cine drive-in. Porém, também é montada de um jeito um tanto estranho. A trilha sonora indica que a cena deve ser engraçada, mas ela é extremamente longa, sem ritmo, e com pouca tensão. Já o momento em que eles chegam no drive-in e abrem a porta da ambulância para Fátima (melhor parte do filme), é rápido demais, e logo termina, encerrando o filme. É verdade que ao se demorar demais nesse final, a cena poderia ficar um tanto melosa. Mas isso é algo que vem da própria narrativa, e principalmente da trilha sonora, que não é lá muito boa.

No geral, O Último Cine Drive-in é um bom filme, com duas ótimas atuações, e com uma narrativa clichê, mas que acerta em muitos pontos por não cair no dramalhão. Só peço aos cineastas que comecem a pensar melhor no tratamento dado a suas personagens femininas, e como seus filmes se posicionam a respeito disso.