Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

A BELEZA ESTÁ DENTRO DE NÓS, QUE OLHAMOS: ENTREVISTA COM EVERLANE MORAES

“A beleza está dentro de nós, que olhamos” é a segunda de quatro entrevistas que iremos publicar ao longo do ano. As entrevistas são parte da minha pesquisa de mestrado, que reflete sobre os olhares agenciados por diretoras negras do cinema brasileiro. Ao longo de dois anos e meio pude acompanhar, refletir e conversar com Viviane Ferreira, Everlane Moraes, Glenda Nicácio e Renata Martins. A pesquisa foi realizada pelo Programa de Pós Graduação em Meio e Processos Audiovisuais da ECA/USP com auxílio da FAPESP e do CNPq.

A conversa com Everlane Moraes aconteceu em abril de 2019 durante a 4ª edição da EGBÉ, na qual Everlane Moraes foi homenageada, em Aracaju (SE). Everlane é natural de Cachoeira (BA), mas foi na capital sergipana, mais especificamente no Quilombo Caixa D’água, que ela passou grande parte da infância até o início da vida adulta. O quilombo e seus moradores são os personagens principais de Caixa D´água: qui-lombo é esse?, o filme que inicia sua filmografia. Em 2015, Everlane ingressou na Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños (EICTV), em Cuba e lá, seu cinema encontrou um interessante diálogo afro-americano. Na entrevista conversamos sobre filosofia, fábulas, mitos e desejos. Aproveite! 

Everlane e o pai, o artista plástico sergipano José Everton Santos.

Lygia Pereira: Everlane, me conte um pouco sobre sua trajetória.

Everlane Moraes: Eu venho das artes plásticas, que é minha primeira área de estudos, pela qual eu tenho muita paixão. Nesse percurso também estudei um pouco de Filosofia da Arte, principalmente, semiótica, iconografia, iconologia das imagens, que é a parte que eu mais gosto nos estudos das artes plásticas. O curso que fiz é de licenciatura,  metade bacharelado e metade licenciatura. Quem tem aptidão artística como eu, que bom, mas quem não tem fica nessa parte teórica da História da Arte ou da Licenciatura. Então eu consegui conciliar as duas áreas no mesmo curso. E quando você está estudando Filosofia da Arte, consequentemente você já estuda Filosofia em si. Como meu irmão é filósofo, eu tive acesso à filosofia grega e à filosofia moderna também, em casa, o que me deu uma base boa pra eu entender depois filosofia ocidental da arte. 

E por isso que eu busquei mais o cinema, porque era uma arte que me possibilitava expandir mais essa coisa das artes visuais e até implementar meu processo plástico, que seria da pintura, das artes plásticas tradicionais, para o cinema, onde eu transponho de maneira super tranquila. Por isso eu acho que meus filmes são tão plásticos. Então, acho que minha base seria essa, filosofia e artes. E dentro dessas duas coisas o que eu mais gosto de estudar, real, é a questão da linguagem cinematográfica, a linguagem das artes em si ou o pensamento em torno da expressão artística de maneira geral, universal, mais especificamente trazendo o recorte para a diáspora. Hoje o meu desejo é estudar filosofia africana, pois no meio disso tudo, quando a gente estuda filosofia, a gente estuda também sociologia, antropologia, fenomenologia, todas essas logias que giram em torno da imagem, giram em torno do social, giram em torno da cultura. Eu gosto, acho que tudo isso se complementa.

L: Eu queria ouvir um pouco mais sobre o “Pattaki”. Desde a sua criação a sua concepção, porque ele é um filme de muitas camadas, tem muitas metáforas e acho que ele traz muito forte essa questão da iconografia múltipla, que você fala.

E: Em “Pattaki” eu queria marcar a presença do mar no filme. Eu gosto muito do mar, eu sou filha de Iemanjá, e é um elemento muito forte, a gente sabe que na diáspora é um elemento central na nossa narrativa, porque o mar nos levou, o mar nos trás, é o mar da escravidão, o mar dos barcos. O mar que é esse orixá forte que rege todas as culturas afro no mundo, este elemento da Deusa do mar que é muito forte. Então, eu queria fazer um filme sobre isso, aproveitando que eu estava Cuba, eu estava numa ilha, onde somos rodeados pelo mar. Também tem essa presença do meu orixá, que cada vez mais se aproxima de mim. Mas esse elemento do peixe que é muito interessante, do peixe enquanto personagem, enquanto um ser dúbio, completamente dúbio, eu gosto muito do peixe. Antes, era um filme sobre Sikán, uma rainha africana que foi condenada e morta por supostamente contar o segredo sagrado ao seu amante e que deu origem a uma seita secreta cubana chamada Abakuá, única no mundo. Pesquisei muito, fiz 23 páginas de projetos e tava tudo certo pra fazer, mas comecei a adoecer, teve umas coisas meio loucas, de ameaça, meio complicadas, porque esse tema é extremamente complicado, então eu tive que abandonar esse tema. Mas aí eu já tinha a vontade de fazer um filme sobre um relato mitológico, eu gosto muito das mitologias enquanto relatos (…) Eu queria transformar a mitologia em imagens, o que também já foi feito no cinema várias vezes, mas eu não tenho muito conhecimento em relação ao documental. Se fez muita mitologia em ficção, mas não documentário em si. Na verdade, na Itália, teve até um cara que pesquisei, um branco aí que eu pesquisei. Ao mesmo tempo eu queria fazer uma mitologia que tivesse essa coisa dos orixás, essa coisa de força sobrenatural, alguma coisa cósmica, mas queria ter como base o social, a vida e a sociedade cubana. O intento foi esse, o de juntar essas duas linguagens, a oralidade dos mitos com a paisagem contemporânea de Cuba transformada, elevada a algo mágico, como se Cuba fosse um lugar mágico. Que essa coisa misteriosa e mágica de Cuba tomasse conta da paisagem social e moderna de Cuba. Então, eu inventei um pataki.

Pattaki (2019)

L: O que é pataki?

E: Pataki significa mito, em Cuba. Só em Cuba existe o pataki para a Santería, A Regra de Ocho ou Ifá. Pataki quer dizer “os caminhos dos orixás”. Cada orixá tem seu caminho, então, por exemplo, o livro de Reginaldo Prandi tem vários patakies, que pra gente não tem esse nome. Mas são vários mitos e cada orixá vai ter o seu caminho, seus mitos, seus relatos que dizem um pouco sobre seu poder, sua psique, seu modo de agir no mundo, sua função. Um mito sempre explica a origem de algo. Por exemplo, a gente explica a presença do mal, dos males no mundo através do mito de Pandora, porque Pandora abriu a caixinha lá de Prometeu, seu marido, e ela com sua curiosidade de mulher abriu a caixinha e nela estavam presos todos os males do universo. A partir da hora que ela abriu, esses males surgiram. Os homens antigos, ao tentarem explicar os males que existem, contavam uma história ou se remetiam a um mito para explicar a origem de algo. 

Então, eu inventei esse mito para falar um pouco sobre o porquê dessas pessoas ou no caso, esses peixes viverem se afogando ou viverem sufocados fora da água. Por que eles não estão na água? Por que eles estão dentro de um aquário? Que é porque eles são regidos por limitações sociais ou limitações humanas. A mulher peixe, por que ela não respira? Por que esse peixe não respira? Porque esse peixe está escondendo algo, sua essência. A partir do momento que esse peixe tirar sua máscara, como a sereia [personagem trans do filme], ele vai conseguir respirar melhor. É uma metáfora sobre algo que o ser humano esconde, o que ele tem de mais íntimo dentro de si e ele esconde, passa a viver sufocado. 

São analogias simbólicas para explicar alguns comportamentos, algumas situações humanas. Por que a gente é tão ganancioso, né? A ganância acaba levando a gente pra algum lugar. Então aquela mulher dos cubos [personagem do filme] é isso, o medo e a ganância levando a gente a se afogar nos nossos próprios medos. Por que o homem se protege nas suas casas, fazendo muros, fazendo contenções, fazendo barreiras que o separam da sua própria natureza ou da natureza em si? Como o Malecón [estrutura de concreto que percorre 8 km da faixa do mar em Havana, Cuba], por exemplo, que separa a cidade do mar, como os prédios e tudo. Chega um dia que a natureza pede de volta, o homem vive com medo que um dia a natureza peça de volta o que ele tenta controlar. A mulher cega [(personagem do filme] representa a fé. Como é que a gente acredita que algo vai curar uma coisa que é incurável? Só através da fé. Ao mesmo tempo que o homem construtor [personagem do filme] tem medo de que essa chuva venha, pois pode desfazer o que ele construiu para se proteger, a mulher cega espera a chuva, que para ela é sagrada. A água é o elemento da vida. Sem a água a gente não vive, existem vários elementos que giram ao redor da água. Agora, e que água é essa? Essa água é essa Deusa. É Iemanjá que tudo vê, tudo controla e tudo castiga também, tirando um pouco de água, dando um pouco de água, tirando aos pouquinhos. E o ser humano vive à mercê dessa força maior.

La Santa Cena (2016)

L: Queria voltar na questão da mitologia. Estou bastante interessada em pensar o Paul Gilroy. Lá no Atlântico Negro ele vai falar dos navios até o diskman como canais de transmissão mitológica. E eu tenho pensado muito no cinema, em como ele pode ser também esse canal de transmissão de modos de viver, modos de pensar a diáspora africana. E aí, por exemplo, no La Santa Cena você parte da representação da Última Ceia do Da Vinci para subvertê-la. Eu queria saber se você busca fazer esse “caldo mitológico”, misturar mitologias ocidentais. Por exemplo, o galo (personagem do filme La Santa Cena) é importante pra mitologia cristã também né?

E: Sim, com certeza. Eu gosto muito dessa coisa de dominar um certo tipo de linguagem universal ou ocidental e dar a ela uma roupagem dentro da cultura afro. Porque a cultura branca é muito influenciada pela cultura negra, a gente só foi forjado, interrompido. E a gente consegue assimilar a cultura do branco e ressignificar dentro da nossa própria cultura, diferente do branco que não consegue assimilar a cultura do negro, a não ser impondo os seus códigos.

L: Que é um pouco o que é o cristianismo, né?

E: É, o branco impõe seus códigos e o negro mesmo com códigos impostos consegue ressignificar dentro da sua própria cultura, isso pra mim é nossa maior resistência, a gente resiste porque a gente não impõe, a gente complementa, dá uma nova roupagem. Assim como, por exemplo, a gente é tão simbólico que Iemanjá pode ser Nossa Senhora Aparecida, sabe? Não tem problema, a gente tá falando da água, de uma energia maior que é a água. Se um branco crê que essa senhora branca é essa água, a gente também tem uma deusa que é a água, então a gente traz pra gente, complementa as nossas potencialidades com outras potencialidades, é uma coisa muito mais aberta para assimilar. O que eu gosto muito também é de rebaixar essa presença branca ou essa legitimidade branca universal e do poder oficial e ressignificar esse próprio poder do branco, melhorando-o, quando o transformo em coisa preta. 

Eu tento fazer uma iconografia que entre em contato direto, em crítica direta ou diálogo direto com outra iconografia que foi imposta. Então se você diz que a Santa Cena é essa, eu digo que a Santa Cena é esta. É uma disputa de poder simbólico. Eu gosto de disputar simbolicamente com o branco, nesse sentido, entendeu? Porque nós temos simbologias muito potentes que foram invisibilizadas. Isso o que você falou é muito interessante, de que o galo é um elemento tão cristão, né? Mas é um elemento tão afro também. Eu gosto de ficar brincando, criticando, fazendo diálogos com a história oficial, é isso. E rebaixando ela à superficialidade, mostrando a ela realidades maiores, mais simbólicas.

L: Você acha que isso é fábula pra você?

E: Não… não. Acho que isso é a parte Everlane conceitual, Everlane crítica, Everlane que quer brincar mesmo… que detém o poder, detém o poder da fala e da imagem e quer brincar e dialogar com essa história oficial de bosta. Mas a parte da Everlane da fábula é a parte da minha cultura, em si. Embora eu seja uma negra até muito culturalmente ocidentalizada, que conhece muito da história do branco, que consegue navegar por esse lugar com muito conforto, eu também sou muito, muito negra. Eu gosto da cultura negra, eu gosto de pesquisar isso, eu acho maravilhoso. Eu acho que a potência está aí. Em tudo isso que eu faço eu quero potencializar a minha cultura, que é o que eu acho que há de melhor no Brasil, no mundo. Esse é o meu lugar de conforto, que eu nunca vou sair e que não é uma coisa que eu sinta que é uma imposição minha, de me legitimar nos espaços, não. Pra mim é onde está a potência. 

Eu nasci em Cachoeira, eu não tenho como fugir, eu nasci em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, fui criada num quilombo. São coisas que estão em mim, compromissos ancestrais que estão em mim, que não saem, são missões que estão em mim, concepções de vida que estão em mim, modos de vida que estão em mim e questões conceituais que estão em mim e que eu acho que eu nasci pra isso, minha missão é essa. Eu não sinto outra coisa dentro de mim, desde pequena, é um lugar confortável. Então como eu tive muito acesso ao universo branco e via como eles diminuíam a gente, eu abracei essa causa. Estar o tempo todo lidando e batendo de frente com o branco, usando a própria linguagem dele para destituir. Usando a própria linguagem dele pra rebaixar o status dele, não como obsessão, mas como proposição, embate. Um processo de retorno ao que foi tirado de nós.

Allegro Ma Non Troppo: la sinfonia de la belleza (2016)

L: Se você puder falar um pouquinho mais sobre a questão da linguagem e como você vê essa ponte entre a linguagem e a filosofia afro-diaspórica.

E: Preciso conhecer muito mais da África, nós conhecemos muito pouco da África. Eu sou muito autodidata, sou uma acadêmica extremamente rebelde e eu trabalho muito na fragmentação. A gente da diáspora é muito fragmentada, somos seres multi.. é… polivalentes, multifacetados e fragmentados, eu gosto dessa ideia de fragmentação e de não conhecer tudo da África e deixar espaço pra essa idealização que eu tenho da África, sabe? Eu não quero aterrissar completamente numa África que não existe, que está somente na nossa cabeça e no nosso coração, que tá dentro do terreiro. Eu gosto muito de estar nesse lugar, de uma Everlane que está muito idealizada, uma Everlane que está muito utópica. Eu tento conciliar o saber alguma coisa, com o não saber nada e o saber um pouco sobre, porque aí sobra espaço pra eu fabular o que eu quiser. Eu gosto muito desse limbo, que é o que eu acho que eu vivo, entre ser brasileira e ser africana. Às vezes eu sou muito brasileira, às vezes eu penso e sinto ter algo de África, às vezes eu não sou nem uma coisa nem outra ou sou as duas coisas. Eu prefiro estar nessa fronteira muito tênue, de estar flutuando, de não saber se eu sou uma coisa ou sou outra, de buscar uma referência aqui, uma referência lá, de buscar. 

Eu acho que a gente tem que conhecer mais de África, primeiro, a gente conhece muito pouco. Eu não me sinto muito confortável de estar representando África ou estar dizendo que eu sou África. Eu sou brasileira, afro-descendente e tenho uma ancestralidade africana que eu não sei completamente qual é, porque é muito difícil você saber de qual povo você veio, é uma mistura de povos, é uma série de coisas. Tampouco eu sou um tipo de negro que nasceu dentro do Candomblé, como nossas mães-de-santo, nossos pais-de-santo que já nasceram feitos santo, que viveram muito tempo dentro do terreiro, que não tiveram acesso às universidades, a viajar pelos festivais, a ter contato com o branco como a gente tem. Então somos negros influenciados por essa outra cultura imposta. Sou do candomblé, mas meu caminho de retorno às minhas origens é muito tortuoso, diferente de uma irmã de santo que nasceu ali, que não foi tão influenciada quanto eu pelo “de fora”. Sou da Bahia, mas não sou da Bahia também. Eu sou uma negra influenciada por uma outra cultura, porque tive acesso a outras coisas. Então isso também é uma coisa que limita, a gente conhece uma África muito mais acadêmica, uma África muito idealizada. Tem sido um caminho tortuoso de retorno, mas que tá me fazendo muito bem, completando um vazio que existia dentro de mim.

A linguagem pra mim é uma questão do que eu gosto. Eu gosto de observar, eu gosto de colher elementos simbólicos, elementos sociológicos e elementos plásticos. O que mais me enche os olhos são as cores, a alegria, a música, a comida, o cheiro, essa cultura que é tão sensitiva. No Candomblé, por exemplo, o nosso Deus vem dançar com a gente, ele entra dentro da gente, ele é a gente. O que a gente cultua são elementos naturais, é físico, tudo tem textura, tudo tem cor, tudo tem alegria, tudo tem música, tudo tem brilho e é isso que eu trago pro cinema, não é nada além disso. Utilizar a luz ao nosso favor, utilizar a linguagem do cinema ao nosso favor para acentuar a beleza que a gente tem, acentuar a complexidade que a gente tem e que é. Somos seres misteriosos, por isso que o branco, a sociedade branca tem medo da gente, porque a gente mesmo sofrendo por 500 anos de colonização, sofrendo tudo que a gente sofre até hoje, a gente tá vivo até hoje, sendo lindos, sendo felizes, ressignificando, fazendo música. 

A gente não morre nunca, a gente tem um poder tão grande que é por isso que a gente foi escravizado, por isso que a gente é invisibilizado, porque há um medo muito grande em relação a gente. Eu tento usar a técnica do cinema, a linguagem a nosso favor, acho que toda arte faz um pouco disso, valorizando o que não foi valorizado. Não é algo gratuito, não é superficial, meus filmes são filmes de gesto. O meu gesto, a sensação, é como se eu estivesse pintando. Eu pinto com luz, pinto com foley, pinto com textura.

Caixa D’água: Qui-Lombo é esse? (2012)

L: Seus filmes são muito silenciosos. Você vê alguma ligação com a oralidade da cultura afro-brasileira?

E: Eu vejo. A literatura, principalmente a oral africana, é muito voltada pra palavra obviamente, mas não é uma palavra objetiva, não é uma informação, é uma contra-informação. Existe nossa imagem do Preto Velho, o que é o Preto Velho? Preto Velho é uma entidade eminentemente brasileira, ele nasceu escravo, diferentemente de quem veio escravizado, ele foi um escravo que já nasceu de pais escravos, em que seu contexto já foi de escravitude desde pequenininho. Ele cresceu como escravo e ele ficou velho, o que é uma coisa muito rara, porque geralmente os escravos duravam 30 anos. Esse preto velho chegou aos 60, 70 anos, só essa resistência eleva ele a um patamar de ancestralidade e importância dentro da comunidade negra que não tem precedentes, é um cara que conseguiu ver muitas coisas. Então ele se torna um conselheiro desse lugar, uma pessoa que aconselha e conta histórias, porque ele tem memória, tem vida pra poder ter esse porte, esse cargo. Quando você escuta uma história, por exemplo, uma história mitológica, fabular, ela sempre quer dar uma sentença, né? Sempre tem no final uma moralidade, é para ensinar algo, é para você refletir. São coisas muito didáticas, mas faladas de uma maneira muito circular, meio misteriosas, nunca é uma informação direta, é uma informação fabular, por quê? 

Porque o que se espera dessas histórias é que a pessoa fabule imagens, que dê tempo da pessoa pensar, refletir, buscar caminhos, que não é o caminho direto, é um caminho muito mais interior. Então eu acho que meus filmes tentam um pouco disso, serem menos diretos e fazerem mais curvas.  

Eu sou menos o griô e mais a pessoa que escuta. Eu acho que eu escutei tantas histórias morando ali no Caixa D’água, morando no terreiro e tudo mais, que o que eu consigo fazer é reproduzir o meu silêncio ao escutar essas histórias e reproduzir todas as imagens que ficam aqui na minha cabeça enquanto a pessoa fala. É como se o griô falasse pra mim e a voz dele virasse uma voz em off dentro da minha cabeça. Eu reproduzo o sentido do que o griô tá falando e não o que o griô tá falando.

L: Você escreve roteiro dos seus filmes?

E: Todos, todos. Eu desenho, faço storyboards, faço um roteiro, faço um argumento, faço um roteiro técnico, faço um roteiro linear, como o de uma ficção, eu faço vários tipos de roteiros, faço um gráfico de simbologias. Eu piro o cabeção. Agora meus roteiros são muito de imagens, mais do que de palavras. Eu gosto do silêncio, acho que a gente precisa de silêncio no mundo, a gente precisa escutar, a gente vive num mundo muito dialético, muito impositivo, da palavra, da voz, que é muito forte. E a gente conseguiu resistir através do silêncio, nossas mulheres principalmente, e os homens também. Conseguimos resistir através da fala, quando alguns falaram e foram mortos, quando alguns conseguiram chegar no espaço em que puderam falar, mas também resistimos muito através do silêncio. Quantas mulheres não morreram e não viveram toda uma vida de silêncio? De choro, falando pra dentro? Quantas vezes a gente não teve que tramar através dos olhos uma fuga? Quantas vezes no silêncio a gente não tramou rotas de fuga através do cabelo? Quantos de nós não nos comunicamos pelo olhar? Um negro e outro negro se comunicam pelo olhar quando gostam de alguma coisa ou quando não gostam. A gente tem essa sensualidade, essa coisa do gesto, a gente é muito expressivo. Tudo isso pode ser acentuado se você diminuir a fala, diminuir o discurso. 

A gente vive num mundo muito discursivo e acho que isso mata muito as imagens. No terreiro a gente aprende a escutar e a calar. Então, meus filmes são a reprodução desse silêncio. Uma expressão vale muito, quando uma pessoa tá triste você pode perguntar a ela por que ela tá triste, mas o corpo dela diz que ela tá triste, diz que ela tá feliz. E a gente quando tá feliz a gente dança, a gente não fala que tá feliz. Como meu cinema é  muito performático também, tem um viés performático, talvez seja um dos motivos. Mas é um cinema no qual toda questão dialética e do discurso estão na minha pesquisa, estão em mim, mas no momento de evacuar isso eu tenho muito mais critério para não impor minhas ideias. Eu tenho ponto de vista, mas eu não imponho ideias. Eu não gosto da minha voz também. E eu não tenho certeza de nada, também. Então eu tô fazendo o filme no fluxo né, da vida, então é um fluxo de observar.

Pattaki (2019)

L: Você pensa essa performance a partir do corpo?

E: Do corpo, do corpo somente. Do meu corpo e do corpo do outro. Eu intitulo meus filmes como um Cinema-Espelho, eu me vejo nos meus filmes. Não faço filmes nos quais eu não me veja. São filmes que falam de mim para os outros e que também falam dos outros, que é a mesma coisa que falar de mim. Então são filmes nos quais eu tô confortável ali, porque eu tô me vendo, é o meu próprio reflexo. Eu nunca vou fazer um filme de pessoas que eu não admiro, porque eu não tenho essa capacidade de falar mal de alguém. Então só faço filme de gente que eu me apaixono. Depois que eu me apaixono pelo o que ela é e vejo que ela tem uma potência subjetiva em si, vejo que ela tem uma persona, eu tento cativar ela pelo olhar mesmo, e pelo olhar ter esse brilho, ser esse espelho, são sinais que chegam. 

No momento de filmar eu sou a cineasta, eu separo. E não é que eu deixo de ser a Everlane, ou passo a ser uma pessoa ruim ou hierárquica, não. No momento de filmar, eu estou para filmar. E convenço meus personagens a estarem também para o filme, porque o filme a partir de agora também é deles, não é só meu, é responsabilidade deles também. O filme é nosso. O momento da gravação é uma coisa tão séria e tão visceral pra mim que as pessoas entendem. Neste momento, tenho meus pudores, mas não tenho pudor para que o filme funcione. Existe um profissionalismo incluso, as pessoas são muito profissionais. Elas podem ser profissionais do cinema também, qualquer pessoa pode fazer um filme, ser ator, ser diretor, basta estar comprometido com aquela atividade. Eu mantenho o contato esporádico com as pessoas que gravo. Eu não estou para modificar a vida delas, nem pra trazer o dinheiro que elas não têm, não tô pra trazer nada disso. Eu encontrei elas daquela maneira e deixarei elas daquela maneira, o que eu puder ajudar com a minha mínima possibilidade, eu ajudo. E acho que já estou ajudando quando tiro elas da rotina, quando eu trago pra elas algo novo, quando eu dialogo com elas e faço elas se verem nas suas telas. De alguma maneira trouxe alguma coisa na vida delas, que durou aquele momento e não durará mais, porque eu sigo avançando pra encontrar com outras pessoas…

L: E elas também, né?

E: E elas também. Então, a relação do dinheiro, eu dou sempre o dinheiro depois, mas eu dou um dinheiro. Geralmente porque a pessoa passou quatro dias comigo, deixou de trabalhar, de fazer sua atividade. Ou então eu compro a mercadoria dela ou eu faço todo mundo da equipe comprar também. Ou eu posso dar em roupa, posso dar em material, mas eu sempre tento pagar meus personagens. Ou às vezes não, porque eles não querem. É uma questão de ética de sempre manter a relação de proximidade e distância necessária. É uma paixão, mas é uma paixão somente por uma pessoa boa, é uma paixão pelo personagem, pela possibilidade que aquela pessoa tem pra determinada coisa, pra esse material. 

Mas tem que medir essa questão da paixão, porque você pode cair numa paixão louca por uma pessoa e você não conseguir extrair dali nada e o personagem dominar, o personagem te dominar, dominar o filme. Você tem que ser muito forte, porque o filme é seu, a motivação é sua. Você que tem que saber o que tem que ser feito, a pessoa não tem compromisso nenhum com isso, né? Ela tava vivendo a vida dela e de repente você chegou. Se você chegou pra modificar a vida delas, modifique, faça a “pincha”, faça seu filme e depois vá embora. Eu tenho isso muito claro, não fico com esse sentimento do “Ah, meu Deus, e agora? Eu fiz um filme e meu filme não vai ajudar em nada a Monga [personagem de Monga, retrato de café] ser uma mulher e conseguir sair dessa condição”. Claro que não, e eu não tô numa posição tão boa também. Ou seja, Monga é linda e maravilhosa, é resistência e continua sendo resistência. Eu a encontrei assim, eu a registrei assim e espero que Monga vá até onde ela possa ir nos esforços dela e na caminhada dela. Porque não tenho essa visão meio paternalista de “Ah, quero modificar o mundo e…”. Não, eu quero modificar as pessoas, deixar uma sementezinha plantada em cada pessoa, depois eu exibo o filme, cada pessoa sai com uma sementezinha plantada e multiplica. É trabalho de formiguinha. Mas nada de representar o mundo, representar todo mundo, modificar, nada disso. Eu não tenho essa pretensão toda. Tenho a vontade de transformar o mundo, mais todo cuidado pra não me frustrar, pois pode ser que eu não consiga… mas creio que já estou conseguindo, pois cada filme é uma semente de reflexão, espiritual e política.

Monga, Retrato de Café (2017)

L: Por que o documentário?

E: Pra mim o documentário é A plataforma, eu gosto de assistir documentários, porque eu aprendo,  eu vivo também com os personagens, com aquela realidade. Eu acho que o documentário é uma plataforma extremamente livre, de formato, o documentário pode ser o que ele quiser, não deve nada, não deve explicação. Eu gosto da metodologia dos documentários — que é diferente da ficção, que requer uma metodologia um pouco mais controlada. Eu tenho muitas questões em relação a trabalhar em filme de ficção, mas eu trabalho. O filme de ficção tem que ser muito bem feito, uma palavrinha de atuação falada mal, um objeto de arte feio, uma coisa feia na cenografia me tira do filme de ficção… Eu fico muito atrelada às artimanhas para fazer um filme, tem que tá muito bem feito, eu tenho que tá muito dentro da história para eu conseguir assistir um filme de ficção. A maioria dos filmes de ficção, alguma coisa me tira da narrativa, porque eu fico prestando atenção em algum erro. Diferente do documentário que não tem erro e não tem acerto. Por mais que você assista um documentário não tão bom, você sempre aprende algo. Acho o documentário muito mais completo, acho que ele garante muito mais todas essas logias dentro dele. Eu acho realmente o cinema de ficção um “porre”, mas um “porre bom”, também é muito lindo, muito maravilhoso.

L: Você acha que você gosta da investigação?

E: Da investigação, do contato com as pessoas, de usar “não atores”, de registrar o cotidiano, a vida social, como ela é mesmo, os erros, os acertos, os acasos, né?

L: Eu gosto muito de documentário e o que me fascina no documentário é a possibilidade de maquiar a realidade e, ainda assim, ser a realidade. Eu gosto de brincar que o documentário é tudo aquilo que você quiser fazer, é tudo que tiver jurisprudência… Se eu tô falando que é documentário, isso é documentário.

E: Eu gosto disso que me deixa fluída no documentário, que é você não sabe o que você vai filmar, e como isso vai passar, e talvez o que você planejou não vai dar. Adoro esses desafios constantes do documentário e às vezes você filma uma coisa, e que bom que você tava com a câmera ligada, se você não tivesse, você ia perder, porque só você viu aquilo e registrou aquilo. Não existe segundo take para algumas coisas. O documentário é desafiador porque ele é a própria vida, que segue, que passa em frações de segundo, o tempo todo e você é muito pequeno, o ser humano é muito pequeno. Eu adoro esse desafio de não poder fazer esses dois takes, de não ter que ensaiar para alguma coisa, de estar o tempo todo ali sendo sacudida. Eu gosto desses estímulos que o documentário me possibilita na vida mesmo. É isso, eu gosto de aventura, acho que o documentário é um lugar de aventura.

Aurora (2018)

L: É, que você não tem o controle…

E: Total e absoluto não né, mas tem. Agora eu trago um pouco da ficção pro meu documentário também. Se bem que às vezes eu acho que não tem tanta diferença entre a ficção e o documentário. Acho que a diferença é a indústria, que deu esse estrelismo para os atores de Hollywood. Trouxeram esse glamour pra ficção e esse glamour que me atrapalha, mas acho que não é muito diferente não, acho que se controla aqui, se controla ali.

L: La Santa Cena, por exemplo, você pode ver ele e achar que é uma ficção tranquilamente.

E: Com certeza, com certeza. Eu até já assumo que pode ser uma ficção.

L: O Aurora também.

E: Eu já assumo, não tenho problema nenhum com isso. Mas eu parto de motivações muito documentais. Na verdade, é a documentação da interpretação e fabulação das pessoas “normais” diante de uma câmera. Não deixa de ser um documento, documentar algo diante da câmera. Tudo é documentário, algo esteve diante da câmera, isto é um documento, um fato real, não é? Por exemplo, a Monga é a Monga, mesmo Monga tendo seu personagem, sua persona. Quando eu cheguei lá, ela colocou essa peruca e ela tem o personagenzinho dela da madame. Eu vou dizer que Monga não é Monga? Cheguei e Monga já não estava querendo ser Monga, já estava fabulando a si mesma, não é que isso não vai ser documentário, eu tô documentando uma pessoa que está fabulando a si mesma, né? Um ser que naquele momento era aquilo, tava querendo ser aquilo. É documentário, nós também todo o tempo queremos ser alguma coisa ou vestimos personagens. Em casa somos alguma coisa com a mãe, com os amigos a gente é outra coisa. No trabalho a gente é outra coisa, na hora de filmar a gente é cineasta, quando termina de filmar a gente é outra coisa. Qual é o problema? Quer dizer, só é ficção o que tá na frente da câmera? E o que tá por trás também que também é uma ficção? Ou seja, também é uma discussão. E por que a gente se limita tanto? Por que se limitar? Eu não consigo entender por que as pessoas se limitam. No meu caso, o filme tá livre pra que as pessoas nomeiem ele da maneira que quiserem. Não tenho problema nenhum, não vou entrar em crise. 

Mas enquanto autora, enquanto criadora do método, eu digo: “Eu faço documentários”. E quando eu digo que faço documentários, eu digo que eu faço filmes, quando eu digo que eu faço filmes eu tô levando em consideração todos esses elementos aí dos outros gêneros. Quando eu digo que eu faço documentários, é porque dentro de mim existe uma documentarista nata! Agora, também existe uma artista que vem das artes plásticas e traz essa manufatura mais ficcional, traz essa plasticidade mais ficcional. Eu sou uma documentarista nata porque eu sou uma pessoa da cultura, eu sou a pessoa da rua, eu sou uma pessoa da análise sociológica, mas ao mesmo tempo eu gosto muito de psicologia, de filosofia, de fabular coisas, de teorias. Acho que essa mescla de coisas que faz meu cinema ser híbrido.

Pattaki (2019)

L: Para fechar, quais são suas referências cinematográficas? 

E: Eu gosto muito de Sara Gómez, uma cubana, que pra mim parece uma mulher extremamente revolucionária, maravilhosa, de uma sensibilidade que não existe, eu sou fã da Sara Gómez, embora tenha uma filmografia muito pequena, porque ela morreu muito jovem. Eu adoro o Spike Lee, tenho muitas críticas ao cinema dele também. Essa posição de homem e tudo mais, tenho muitos problemas com o Spike Lee, mas acho ele de uma linguagem extremamente original, esse cara é um gênio. Eu gosto muito do Zózimo, principalmente por Alma no Olho. Não tem uma filmografia muito assim “Ohhhh” e tal. Mas por sua atitude, por ele ter sido o ator que ele foi, por ele ser um defensor do Cinema Negro como ele foi, uma figura muito representativa pra gente.  Eu gosto de Yves [Yves Saint Laurent], que é esse documentarista que é bem minha cara, eu gosto muito dele. Ele fez  filmes de sinfonia, sinfonia da cidade, muito musicais, são documentários muito elevados à poesia e tal. Yves eu acho maravilhoso. 

Eu gosto muito de várias mulheres negras contemporâneas, como a Viviane Ferreira, a Larissa Fulana de Tal, Joyce Prado, Renata Martins, Taís Amordivino, Safira Moreira, Juh Almeida, várias. Acho que fazem cinema muito potente, muito centrado, ao mesmo tempo de conteúdo e de forma muito bem equilibrada. Tamém tem os cineastas negros David Aynan, Vinícius Silva, Gabito (Gabriel Martins), André Novais, Diego Paulino. São cinemas diferentes, mas cada um com seus erros, acertos, suas obsessões, enfim, suas existências e subjetividades.

Eu gosto muito do Vertov, do surgimento do cinema, embora seja muito branco também, mas eu gosto de assistir esses primeiros experimentos do cinema, diretores que estavam muito em nível de conceito e tal. Ou seja, aquela coisa, eu consigo aproveitar qualquer linguagem dessa e trazer pra negritude, esse é o meu diferencial. Eu não tenho essa crise não. Porque foi feito por branco, eu consigo separar o joio do trigo, consigo tirar o que do branco nos serve e aproveitar… Gosto muito da Varda… são mulheres brancas também, mas bom, são mulheres sensíveis, né? Tem Jordan Peele aí que tá me impressionando com seu cinema. 

L: Bom, acho que chegamos ao fim. Você quer acrescentar alguma coisa?

E: Acho que meus filmes refletem um pouco de como minha cabeça funciona. Minha cabeça funciona a mil, meus olhos funcionam a mil, é muito latente essa coisa do fazer artístico, da ancestralidade na minha família. São muitos estímulos à arte desde pequena. Eu não sei fazer outra coisa na vida, eu me sinto muito confortável dentro do cinema, fazendo o que eu faço. Às vezes eu tento até fugir um pouco dele porque eu me pergunto: “Será que não tá muito conceitual, Everlane?”, “Será que você também não consegue se despir de algumas coisas e experimentar outras?”. Mas eu gosto dele, então, eu vou continuar fazendo esses filmes que eu chamo de experimentos estéticos. Eu adoro colocar a gente nesse lugar, eu adoro quando tem pessoas que, historicamente, socialmente, ou que no nosso imaginário coletivo são pessoas que são incapazes de estarem nesse lugar. E de repente eu pego elas e coloco no lugar de conceito, de filosofia, de logia, extremamente complexo e sofisticado. 

Eu adoro quando coloco essas mulheres num lugar tão sofisticado. Pra mim isso é um tapa, é um murro na cara do branco, porque eu sei que eu tô falando com o branco, eu sei o que eu tô atingindo dele, eu sei a raiva que ele tá de mim, eu sei que eu sou um mistério pra ele. Primeiro que minha estética, minha idade e de onde eu vim, seria impossível fazer um cinema tão conceitual como esse, tão engajado e tão firme, né? Que consegue falar com ele de maneira horizontal ou até acima, em uma posição que ele não está acostumado. Eu sei onde meus filmes são bons, em relação aos filmes brancos, eu sei onde eles nunca vão conseguir fazer igual, né? Então, eu gosto muito desse lugar, que pega o nosso que é tão simples, cotidiano e tão estigmatizado dentro de um lugar considerado pequeno e trazer ele pra um lugar extremamente conceitual, de nível altíssimo de filosofia, de logia. Sei onde eu atinjo o branco com isso, onde o branco fica com muita raiva, onde o branco consegue a partir daí compreender como a sua antropologia é uma antropologia de merda, sabe? O quanto a sua antropologia reflete o seu caráter, e a sua malvadeza, sabe? 

Então, quando eu faço esses filmes eu estabeleço uma “nova” antropologia visual contemporânea. Eu sei que nenhum antropólogo conseguiu representar o negro dessa maneira, dando esse cárater de sujeito, como eu tô dando. É uma maneira de contribuir, dialogar diretamente com essa crítica que eu faço às imagens do negro na contemporaneidade. De dialogar com o Fanon, com a literatura  das mulheres negras, com Racionais, com Virginia Rodriguez, Zezé Motta, Léa Garcia, Beatriz Nascimento, Nina Simone, Milton Nascimento, Arthur Bispo do Rosário, Belkis Ayón, Bob Marley, meu pai, meus ancestrais. São muitas possibilidades, em todos os meios, linguagens, logias possíveis onde nós negros somos plenos. É aí que eu bebo.

Set de filmagens de Aurora (2018)

L: É de dentro, né?

E: É tudo isso. Me modifica.  Botar um pouquinho de cada coisa nos filmes, pra ver nossa beleza. Me faz achar que realmente estou fazendo a coisa certa. Ainda bem que eu não sou aquele tipo de negro que não tá ligado nisso, ou seja, que bom que desde muito cedo eu consegui ter a possibilidade de estar nesse lugar hoje, sabe?

L: Acho que isso tem muito a ver com a maturidade do seu trabalho.

E: Às vezes eu penso como deve ser triste ser um negro sem contexto, sabe? Eu sou tão brasileira e tão negra que meu cinema não poderia ser diferente. E de maneira autoral, eu faço o cinema que eu gosto de assistir. Eu gosto de saber que pessoas que não assistem esse tipo de formato assistiram meus filmes, eu gosto de estabelecer esse “novo” tempo no cinema, esse “novo” silêncio, esses corpos bem fotografados, essa plasticidade gigante. A gente tá acostumado a ver negros ou certas condições sociais filmadas de maneira que essas imagens não fiquem bonitas porque a gente precisa da coisa feia pra sustentar certo discurso. Por que quando a gente filma a pessoa na feira a gente tem que filmar com a camerazinha meio tremida, não pode ser uma câmera melhor, tem que ser com uma câmera mais simples? Parece que tem que tá cru e feio. Então, essas coisas me atrapalham muito, porque eu acho que dá pra filmar com uma RED [câmera de cinema profissional] um feirante, sabe? Acho que a beleza é fundamental e me incomoda muito esse lugar da filmagem precária ou da imagem precária. Mesmo na precariedade a gente também é bonita, pode ser bonita, pode ser melhor valorizada, sabe? Na verdade, acho que não é nem uma questão do dispositivo, é uma questão de olhar, de respeito, de responsabilidade, de ponto de vista. A beleza está dentro das coisas, dentro de nós, que olhamos. Penso assim, são coisas que podem se modificar ao longo do tempo, com minha carreira. Mas é isso, não tenho nenhum tipo de pudor de juntar as artes plásticas com o cinema e pintar, e pintar no cinema. Eu sou uma artista plástica e cineasta ao mesmo tempo. 

*

Everlane Moraes escreveu sobre Caixa D’Água: Qui-Lombo é Esse? (2012) para a edição nº01 do Verberenas.

O OLHAR COMO ATO DE CRIAÇÃO DO MUNDO

Em 2020, na ocasião da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conhecer a diretora Viviane Ferreira, diretora do longa-metragem Um Dia com Jerusa (2020). Dentre essas poucas conversas que tive a felicidade de ter com ela, alguns de seus questionamentos me marcaram, me desafiaram. Lembro que ela pensava bastante no lugar da crítica, e de uma crítica negra, e na relação de velhas e novas críticas com os filmes que surgiam – e filmes como o dela, que surgem a partir de cosmovisões pouco vistas e da consolidação de demandas políticas construídas ao longo de anos e anos. 

Uma de suas indagações ficou comigo, depois daqueles encontros: que gramática, que aproximações a crítica de cinema pode construir a respeito dos cinemas negros de hoje e dos que virão – e quais olhares surgem a partir de uma crítica que se localiza também como negra nesse ecossistema das imagens e das palavras sobre as imagens? Se o cinema negro é um projeto em construção, como afirmou Janaína Oliveira há alguns anos1, as críticas negras o são também, e caminham com os filmes em um processo múltiplo e espiralar, no qual idas e vindas, aberturas e composições podem engendrar poéticas e políticas.

Dentre as várias perspectivas possíveis para dialogar com Um Dia com Jerusa, escolhi olhar a partir de autores negres e/ou brasileires, que têm como referência as cosmovisões afro-brasileiras. Parto das pistas que o próprio filme traz, e me permito passar por ele, decifrar, buscar rimas e consonâncias com filosofias que me ensinem outras formas de imaginar.



Tecido, textura 

O longa-metragem Um Dia com Jerusa (2020), de Viviane Ferreira, traz novamente Léa Garcia e Débora Marçal nos papéis de Jerusa e Silvia, personagens que primeiro surgiram no curta-metragem O Dia de Jerusa (2014), da mesma cineasta. Aqui, a diretora reinventa a relação entre as duas personagens para fazer emergir novos atravessamentos. Silvia, jovem negra, médium e historiadora, aguarda o resultado de um concurso público enquanto trabalha fazendo pesquisas para uma empresa de sabão em pó. Ela acaba batendo à porta de Jerusa, mulher negra, idosa, que vive sozinha na região do Bixiga, em São Paulo, e que no dia de seu aniversário acaba enredando Silvia em sua casa, em suas histórias e, por fim, em sua vida. O filme elabora aberturas e passagens entre dimensões – visível e invisível, esquecimento e memória, presença e ausência – que compõem a malha subjetiva da população brasileira, de subjetividades compostas tanto pelos processos violentos que vivemos desde o sequestro dos povos africanos durante a colonização portuguesa nas Américas, como por cosmovisões que vêm resistindo a essa violência, trazidas pelos sobreviventes da travessia do Atlântico, e transformadas por seus descendentes.

“As culturas negras que matizaram os territórios americanos, em sua formulação e modus constitutivos, evidenciam o cruzamento das tradições e memórias orais africanas com todos os outros códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ou ágrafos, com que se confrontaram. E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade afro-brasileira, num processo vital móvel (…)” 

Leda Maria Martins2

Tecido e textura. Falas e gestos. Interação. Coreografia. São palavras que surgem quando Leda Martins pensa a identidade afro-brasileira, em suas constantes transformações e reatualizações. O dinamismo dessas formações e a força de seus enraizamentos não combinam com a estereotipia e a ausência que marcam os aparecimentos de povos e pessoas pretas nas imagens cinematográficas brasileiras. Também nos foi reservado, na História com H maiúsculo, o lugar de quem é olhado, e raramente o de quem olha. Nos dias de hoje, diversas artistas têm buscado fracionar essa história, colocar-se entre as frestas. Nesse contexto, a cineasta Viviane Ferreira é uma das poucas mulheres negras que dirigiram um longa-metragem no Brasil. Não à toa, ela faz das ausências o ponto de partida para a construção de presenças politicamente implicadas.

No início, podemos notar aparições que deslocam os imaginários a respeito das pessoas negras que povoam o Brasil; aqui, em específico, a região do Bixiga, na cidade de São Paulo. Silvia é uma jovem que estuda para concursos, e vemos na tela de seu computador que tem uma professora também negra, que ressalta em seu discurso a subversão que é existir como mulher preta no Brasil. As pessoas que cruzam as ruas são retratadas com dignidade: as duas amantes na rua, o catador de recicláveis e o declamador de poesias surgem sorrindo, parte viva e constituinte da cidade. Aliás, todas as pessoas mostradas no filme, nas ruas e nas visões e histórias partilhadas por Silvia e Jerusa ao longo do filme, são negras. Em um mundo em que os filmes brasileiros não se constrangem em, muitas vezes, povoar suas imagens apenas – ou em maioria – com pessoas brancas, Viviane Ferreira constrói um mundo inverso para tornar visíveis as pessoas negras em sua multiplicidade.

Jerusa compra, então, uma filmadora e aponta para o declamador, que fala como um griô, ainda que tenha um livro nas mãos. Ele recita o poema As mãos de minha mãe, da escritora baiana Lívia Natália:

“Nos dedos vincados de veias grossas,

na curva que se enruga no mais preto das dobras

as mãos de minha mãe perfazem os caminhos de meu mundo.

(…)

As mãos de minha mãe, cada vez mais idosas,

guardam, em suas linhas, o segredo de nosso destino,

elas se cruzam no ventre da espera, e nasce

sempre feliz, sempre feminino.”

Lívia Natália3

Vemos o enquadramento de Jerusa, que empunha a câmera; ouvimos o poema declamado, que indica o poder fundante da voz. O filme avisa que conheceremos Jerusa através do que ela dá a ver ou esconde em atos de criação do mundo.

Outras presenças/ausências emergem, muitas vezes em um só corpo: descobrimos que Silvia é uma jovem homossexual em um relacionamento escondido da família. Através dos momentos em que experimenta transes, Silvia converte em visibilidade os apagamentos históricos. Enquanto escuta a coordenadora de seu trabalho falar sobre o Bixiga, Silvia nos dá a ver, em transe, um festivo carro da escola de samba Vai-Vai subir a rua. A Vai-Vai reivindica a vanguarda dos negros na constituição da região4, contra o discurso hegemônico de que seus primeiros habitantes teriam sido imigrantes italianos. Quando as duas protagonistas finalmente se encontram, Jerusa começa a narrar as histórias da família, ligadas à Vai-Vai e ao rio Saracura, um dos rios invisíveis, canalizados, que correm por baixo da cidade de São Paulo.

As populações negras que fundaram o Bixiga buscavam a proximidade com o rio que, quando corria visível, servia às lavadeiras e às crianças pretas que as acompanhavam. É a partir da pergunta sobre lavagens de roupa que Silvia, sem querer, aciona as memórias de Jerusa, que acompanhava a avó nas lavagens no Saracura. Ao desfiar sobre o rio, Jerusa atrai Silvia para a correnteza, para dentro da casa, para um espaço-tempo que identifico com a ideia de encruzilhada.

Interseção, ponto nodal, encruzilhada

Volto a Leda Martins para melhor definir – ou abrir – o conceito de encruzilhada, que me ajuda a pensar no visível e no invisível que se apresentam no filme, nas existências materiais e imateriais, naturais e sobrenaturais que compartilham o mundo:

“A cultura negra é uma cultura das encruzilhadas.

Nas elaborações discursivas e filosóficas africanas e nos registros culturais delas também derivados, a noção de encruzilhada é um ponto nodal que encontra no sistema filosófico-religioso de origem iorubá uma complexa formulação. Lugar de intersecções, ali reina o senhor das encruzilhadas, Exu Elegbara, princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e interpretação do conhecimento. Como mediador, Exu é o canal de comunicação que interpreta a vontade dos deuses e a eles leva os desejos humanos. Nas narrativas mitológicas, mais do que um simples personagem, Exu figura como veículo instaurador da própria narração. ” 

Leda Maria Martins5

Essas dimensões da existência, no entanto, não podem ser compreendidas a partir de uma visão ocidentalizada dicotômica, de dualidades que se opõem, não se cruzam ou não se afetam. Se, como afirma Martins, a encruzilhada é um lugar de intersecção, regido por uma energia mediadora e canalizadora, essas dimensões estão intrinsecamente ligadas, afetam e constroem uma à outra. “Operadora de linguagens e de discursos” e “produtora de sentidos”, a encruzilhada em Um Dia com Jerusa é a abertura que surge do encontro entre Silvia e Jerusa, para uma oralidade que aciona a visão, para uma visão que aciona história, e uma história que aciona uma passagem.

Silvia é sensitiva, médium, mediadora: através de seus transes as histórias desfiadas por Jerusa se traduzem em imagem. À medida que enreda Silvia em suas histórias – e não por acaso, cada vez mais “para dentro” da casa –, notamos que Silvia e Jerusa não estão sozinhas. Alguns enquadramentos sugerem que há presenças ali para além das duas. O espectador também pode se localizar pela perspectiva dessas presenças. Não só como quem olha de fora, mas como é convidado a observar de perto. O contato com as presenças invocadas pela narração de Jerusa faz com que Silvia possa de fato ver – e nos dar a ver – imagens de vidas ancestrais, de resistência e criação.

Ao contar a história da avó e de como herdou seu nome, Jerusa versa sobre a oralidade como ferramenta de sobrevivência: “Anunciação era também o nome de minha avó. Maria Jerusa Anunciação. Ela não era registrada e nem letrada. Mas sabia enganar os letrados”. Ela continua: “Mãe contou” – e aqui Jerusa insere outra narradora que toma parte no tecer de sua vida – “que vovó era negra ladina. Fugiu do senhor que a tinha como propriedade e se apresentou para um outro que a marcasse como de aluguel”. Ela conta então que a avó se apresentou ao novo senhor como Maria Jerusa Anunciação: Maria, como a mãe de Deus, Jerusa, como em Jerusalém, e Anunciação, porque estaria destinada a anunciar o retorno de Jesus. Através da impressão de que compartilhava com o opressor da fé dos brancos, Maria Jerusa o convencera a pagar pelos serviços de lavadeira. Aqui, Jerusa repassa uma sabedoria dialógica –  que se mistura a uma subversão do feminino –, um saber do qual a avó se serviu para subverter o sistema escravista e forjar, aos poucos, a própria liberdade. Diante de momentos de inflexão, de encruzilhadas, mais que sobreviver ou resistir, as antepassadas que Jerusa evoca forjaram outros futuros :

“Os sobreviventes podem virar ‘supraviventes’: aqueles capazes de driblar a condição de exclusão, deixar de ser apenas reativos ao outro e ir além, afirmando a vida como uma política de construção de conexões entre ser e mundo, humano e natureza, corporeidade e espiritualidade, ancestralidade e futuro, temporalidade e permanência. (…) Mas o salto crucial entre a sobrevivência e a supravivência demanda um conjunto de estratégias e táticas para que saibamos atuar nas batalhas árduas e constantes da guerra pelo encantamento do mundo.”

Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino6

A supravivência marca todos os atos de narração de Jerusa. O filme não esconde, porém, a presença das ausências: Silvia e Jerusa compartilham, junto a inúmeras famílias negras brasileiras, a dor de perder um ente querido para a violência da polícia e do tráfico. Essas aparições perpassam o filme de forma repetida, como é repetido o luto. Não precisamos ver a violência que os vitimaram. Viviane Ferreira demonstra mais interesse em construir outro repertório imagético sobre vidas pretas.

Tomo como exemplo a bela prosa de Jerusa sobre o avô, o negro Pizzolato, que vemos através da tradução sensitiva de Silvia. Era um somali chamado Aberia, que se tornou assistente de um fotógrafo italiano em expedição no chifre africano. Após o falecimento do italiano, Aberia era o único que sabia manusear os equipamentos de fotografia. Passou então a ser chamado de Pizzolato e voltou para a Itália com a expedição. No início da imigração dos italianos para o Brasil, chegou ao país em condição bem diferente dos negros que mal tinham saído da condição de escravizados. Uma vez no Brasil, casou-se com Maria Jerusa, a avó de Jerusa. Ensinou-a a fotografar. “A sua avó era fotógrafa ou lavadeira?”, pergunta Silvia. “Vovó era tudo que precisava”, responde Jerusa. A estratégia de supravivência garantiu uma nova vida ao casal (os avós), em São Paulo, e marcou a família com a herança da fotografia, que preenche toda a casa de Jerusa – também herança dos ousados avós. A fabulação proposta pela roteirista e diretora Viviane Ferreira dialoga com o apagamento da ancestralidade de grande parte da população afro-brasileira, que em muitos casos não possui fotos ou registros dos antepassados, nem conhecem suas histórias.

Água, correnteza, mpámbu anzila

Lá no início do filme, quando conhecemos Jerusa, escutamos o aviso: “eu acho que hoje as águas vão lavar tudo”. Em certo momento, realmente chove, e quando um sino revela que as águas do rio invisível subiram, Silvia é convidada a adentrar ainda mais a casa Jerusa. Na parte mais baixa da construção, há um poço. “Depois da canalização, vovô construiu esse poço e disse: ‘na minha casa, o rio tem como respirar”’, diz Jerusa. O apagamento e a submissão da natureza na cidade de São Paulo, aqui representado pela história de apenas um de seus dos rios canalizados, coincide com o apagamento e invisibilidade dos povos que habitavam suas margens e usufruíram de suas águas.

Jerusa narra: “A vovó contava que o velho Saracura era a salvação de quem buscava alimentar a liberdade. Fui batizada nas águas do Saracura. E nele, aprendi a nadar. Em suas margens, mamãe me ensinou a fotografar os pássaros de pernas finas comedores de goiaba. ” Na voz, o carinho pelo significado cosmológico e afetivo do rio. Na imagem, as águas transparentes e o peixe que nada mostram que o rio está vivo. Nos diz Makota Valdina:

“Então, existe o mundo visível, natural, onde nós habitamos, e o mundo invisível, sobrenatural, espiritual, o mundo habitado pelos ancestrais. Só que nesse nosso mundo natural que nos cerca está também o mundo sobrenatural. (…) vocês podem até não acreditar, mas tem mais gente além de nós aqui, nos ouvindo, nos olhando, tem energias aqui, conosco, interagindo. Então, todas as nossas interações ocorrem nesse mundo, nesse nosso plano natural. A gente interage com o mundo sobrenatural é nesse plano; a gente não tem que esperar para ter vida espiritual, nem estar em contato com o que é espiritual depois da morte, não.” 

Makota Valdina7

A interação com o sobrenatural mediada pela relação com a natureza é parte fundamental das cosmologias negras na diáspora de origem ioruba e banto. Fonte de vida e fonte de visão. Há na casa de Jerusa um poço e uma sala de revelação fotográfica. As águas revelam imagens. Jerusa, em mais um ato instaurador, compartilha através da câmara escura da sala uma outra imagem da cidade, uma em que rios e pessoas invisíveis coabitam. Mais do que contar a própria história, Jerusa ensina Silvia a entrar em contato com o que é “para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir”, como já disse Mestra Pedrina dos Santos8.

Retorcer a imagem, colocá-la de cabeça para baixo, para ver de outra maneira. Tal proposta diz respeito também às imagens do passado: ver de outra forma o passado, cultivar o presente e construir o futuro. Diz Jerusa: “O cultivo é o melhor professor. Se você cultiva o esquecimento, alimenta a lembrança da dor para se convencer que tem que esquecer. Se cultiva a memória, pode escolher alimentar a dor ou o impulso da liberdade.” 

Todo o discurso de Jerusa me parece um longo convite para que Silvia também habite o espaço-tempo da encruzilhada. O sangue que desce entre as pernas, a saia, o cabelo trançado: Silvia passa por uma espécie de iniciação em um tempo suspenso no qual Jerusa transmite o que ela precisa conhecer para seguir – no emprego, no relacionamento, na vida. Silvia abraça a encruzilhada. Para a Mestra Makota Valdina, mpámbu anzila.

“Estar em mpámbu anzila é estar numa encruzilhada, o que significa estar num ponto de tomada de decisão e isso vale para tudo. A todo momento estamos em situações de decidir o que temos que fazer, o que queremos fazer, que rumo tomar. Nem sempre as escolhas que cada um faz é a mais certa e adequada, e assim, tem-se que assumir as consequências das escolhas feitas.”

Makota Valdina9

Silvia descobre, ao encontrar o quarto de Jerusa, que não foi a única que habitou aquele espaço-tempo. A coleção de fotos sobre a parede nos mostra que Jerusa fazia dos aniversários momentos em que driblava a solidão para formar laços inesperados. Movida por Exu ou mpámbu anzila, pela oralidade e pela história, Jerusa guia Silvia e espera as águas. Quando a jovem encontra o jornal com o resultado do concurso, vê que foi aprovada e corre para contar à nova mestra. Encontra o corpo de Jerusa, que repousa tranquilo, inerte. O esquecido formulário de pesquisa de sabão em pó fora preenchido. Uma foto de Jerusa com o misterioso jovem que vemos durante todo o filme é deixada, como uma carta de despedida. O dia de nascimento se torna o dia da morte – ou do renascimento para outro plano de existência. Silvia e Jerusa atuam, então, como facilitadoras dos caminhos uma da outra. Desfeito o nó, atravessada a encruzilhada, Jerusa pode seguir em paz. E eu, permeada de sentidos e sensações, posso seguir em frente, em busca de outros olhares para outros cinemas. 

 

HOMEM PRETO CONFINADO E A ESPERA POR SI MESMO

Por que eu escrevo?

Porque tenho que

Porque minha voz

em todas as suas dialéticas

foi silenciada por muito tempo”

Jacob Sam-La Rose

 

Emerson, que viveu e cresceu em Ilha Grande, decide fazer um filme. Para isso, sequestra um cineasta, Henrique, para dirigir a história de sua vida. Somos desafiados a entender, junto a Henrique, não só como (e se) é possível filmar a história de uma vida, mas como contar/mostrar aquela vida, em específico, daquele homem preto, pobre, confinado. Assim começa Ilha, segundo longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio, que estreou no 51 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e levou o (merecido) prêmio de melhor roteiro.

Henrique, o sequestrado, quer saber porque deveria se engajar naquela história, se submeter à agressividade, à ironia de Emerson. O desconforto e a claustrofobia de Henrique são os mesmos a que somos expostos ao acompanhar o início da história, e ele é benéfico: cumpre a função de nos fazer, como espectadores, ajustar o olhar, ajustar o foco, minuto a minuto. Em Ilha, a linguagem é rápida, quase estressora, em muitos momentos como se avisasse que algo está prestes a estourar. Tal tensão é o sentimento que Emerson impõe ao filme, por sua indefinição, por sua dilacerante tentativa de recriar cinematograficamente a própria vida, por sua recusa em deixar Henrique escapar ao envolvimento com aquela história, com aquelas imagens/cenas da vida do homem que nunca deixou a ilha.

À medida que Emerson se revela em meio à escolha do elenco de seu filme, entre ensaios e filmagens de momentos chave de sua vida, aquele personagem, homem preto, pobre, confinado àquele lugar, vai se complexificando, torna-se difícil confina-lo ao histórico papel do Outro reservado às pessoas negras, racializadas, marcadas. Somos obrigados, se quisermos tentar compreender (verdadeiramente) Emerson, a abrir mão de inúmeras imagens, discursos, histórias preconcebidas sobre quem ele é, o que quer, o que pode fazer, que sonhos pode ter, se tem direito à sobrevivência. “Quem é o homem preto?”, ecoava na minha cabeça ao sair da sala de cinema. Pode esse homem preto falar?

Eu não posso ir ao cinema. Eu espero por mim. Ele [o branco] espera pelo(a) Negro(a) selvagem, pelo(a) Negro(a) bárbaro(a), pelos(as) serviçais Negros(as), pelas Negras prostitutas, putas e cortesãs, pelos Negros(as) criminosos(as), assassinos(as) e traficantes. Ele espera por aquilo que ele não é.”

Franz Fanon

Emerson fala, e fala muito, é verborrágico, sua verborragia é a trilha do filme, dita o ritmo. Tem na garganta entalada uma história própria para contar e ela não é fácil de colocar em uma caixa. Para nós, pretos, é um encontro de imagens que exprimem afetos não permitidos, pouco vislumbrados imageticamente, apagados pela subalternidade que o cinema, historicamente, reproduz muito bem. Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem em Ilha esse retrato desconcertante, cru, da urgência voraz de um homem que não pede licença, é agressivo, mas também amoroso, pesaroso. Se revela traficante, envolve-se sexualmente com Henrique, confessa que fora violentado. Mas antes que se possa pensar “então esse é Emerson” ele se revela sempre mais. Perfeccionista, angustiado, carinhoso, genial.

Ilha, ao recusar-se a definir, acaba por denunciar a precariedade das imagens que aceitamos, ou que nos são introjetadas continuamente. Tem imagens e discurso que desafiam o imaginário branco, ou as fantasias brancas do que deveria ser a negritude, a sexualidade e afetividade do homem negro diante de outro homem negro. Sobretudo nesse aspecto, seria ambicioso da minha parte tentar delinear todos os signos ali presentes dessa masculinidade, para isso é bem melhor confrontar-se com o filme, e mais ainda com o filme dentro do filme, realizado por Emerson. Ali está uma tentativa dilacerante em entender a si mesmo, diante das imagens da mãe, do pai violento e abusador, do cão assassinado. Que menino preto foi aquele, preso na Ilha, que queria fazer cinema, atado à morte? Sobreviver era uma escolha?

Emerson, ao tentar apropriar-se de si, das próprias imagens, da própria vida, por fim revira Henrique por dentro até que cineasta reencontra propósito no fazer cinematográfico. O que se constrói entre os dois homens, a mistura e o desnudamento – literal e metafórico – a que se entregam no processo de feitura do filme, é também a própria representação do exercício de humanização profunda que os diretores realizam em Ilha. Através de Emerson e Henrique, um silêncio é quebrado, e torna-se evidente: confinar o homem preto é um enorme desperdício de possibilidades, de potência, de vida. Como humanidade, perdemos todos.

SUAVE PAISAGEM AZUL DO VER E DO OUVIR

Foi difícil começar a escrever sobre Temporada. Assistido naquela sala enorme onde acontece o Festival de Brasília, à medida em que seu tempo de duração avançava, eu sentia uma excitação tranquila tomar conta ao perceber o que estava diante de mim. Algo meio mágico, místico. Era um filme especial. Por isso mesmo, a dificuldade: como escrever um texto inteiro tecido em elogios que contribua para uma discussão estética? Como evitar a generalização e delimitar o que conferia ao filme tamanha suavidade e precisão?

Temporada acompanha Juliana, personagem vivida pela grande atriz e dramaturga Grace Passô, que se muda de Itaúna para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, consegue uma vaga para trabalhar no combate a endemias e espera a chegada de seu marido no novo endereço. A marca do naturalismo e sensibilidade com os quais o diretor e roteirista André Novais Oliveira trata suas histórias, em filmes anteriores vividas por atores não profissionais de sua própria família e de sua convivência, como em seus curtas-metragens e no longa-metragem Ela volta na quinta (2014), permanece presente.

Juliana, aos poucos, constrói laços com os personagens e com o espaço da cidade em seu novo contexto. Em planos em tons de azul claro com pitadas de amarelo e vermelho, assistimos a suas caminhadas pelos bairros batendo de porta em porta e interpelando desconhecidos para prevenir os focos de mosquitos. As interações são singelas. Vemos seu ponto de vista do alto de um telhado. A paisagem da cidade se alterando, Juliana como parte dessa paisagem.

Os laços que Juliana tece são tecidos por nós também. Os novos amigos de Juliana, com destaque para o personagem de Russão, são também nossos. Estamos ali. Na conversa que Juliana tem com uma amiga na pequena mesa encostada na parede da cozinha, em que o sentimento de confissão e confiança é tremendo, sentimos que também estamos guardando um segredo. A preocupação carinhosa que Juliana tem com os acontecimentos na vida de Russão é nossa também.

E, portanto, de cena em cena, de diálogo em diálogo, de movimento de câmera em movimento de câmera, com eventuais clarinetes, dos azuis aos amarelos até chegar ao maiô vermelho na cachoeira, Temporada se constrói como uma obra ritmada, de tempos e sensações que parecem ter sido esculpidos; chega a parecer uma música. Digo naquele sentido de que os sons, as canções, tocam o âmago de uma maneira tão visceral e simples que é difícil de ser destrinchada (e queremos destrinchá-la?).

Ao mesmo tempo, vejo Temporada como um filme de cumplicidade. É um filme de silêncio: o nosso, do espectador, que silencia para ouvir melhor. Para sentir um clima e intuir. Sem megalomanias ou exageros de complexidade artificialmente implantados com o objetivo de produzir emoções específicas, sem uma instrumentalização óbvia do cinema. E, nesse sentido, me peguei pensando no potencial político de um filme como esse.

Caminhando pelo Festival de Brasília nas edições dos últimos quatro anos, foi possível ouvir comentários pejorativos sobre a política que se constrói nos filmes. Como se um filme político fosse um filme que não pensa suficientemente na forma, na estética, em questões existenciais e universais. Como se fosse possível fazer um filme sem se imbricar na forma, na estética e em questões também universais. Existe um olhar anacrônico que defende que um filme precisa optar entre a política e a estética. E, normalmente, é justamente esse olhar que cobra de sujeitos que escapam aos marcadores sociais hegemônicos (que talvez possam ser definidos no Brasil como: um homem branco, heterossexual, da capital, sudestino e de classe média alta) algo que represente alguma “reivindicação” evidente.

Quando a estrutura que nos constrói como sujeitos históricos está organicamente entrelaçada à experiência do filme, por vezes corre o risco de se tornar ponto cego no olhar dos que nunca precisaram fazer esse esforço para ver. Desacostumados. Felizmente, sinto que o caminho que tem sido trilhado possibilita que cada vez mais essas opacidades no olhar sejam desmanchadas e/ou reconhecidas; que exista ao menos consciência do que não se vê, do que não se ouve. Em Temporada, ouvimos e vemos nossos arredores (os de Juliana, na verdade). Sentimos o tempo passar entre as caminhadas, a mudança do penteado, a nova estação vindo no vento.

Não sou a primeira a dizer que o filme de André Novais Oliveira sinaliza algo nesse sentido de uma política que se dá pelo cotidiano e pela relação. Entre masculinidades, feminilidades, negritudes, ausências e presenças, a existência no espaço de Contagem. Questões sociais fundamentais dessa rede de afetos e solidões de Juliana estão presentes ali no filme para serem sentidas, vividas e discutidas, enquanto há essa magia no ar que se alastra. Temporada é um filme preciso, suave e verdadeiro. É especial, por ser assim de uma forma que talvez não deva ser esmiuçada em palavras, muito menos em termos técnicos. Uma questão de intuição.

 


Leia também o texto sobre Ela volta na quinta (2016).

CAFÉ COM CANELA, POR UMA ESPECTADORA NEGRA ENTRE A FRUIÇÃO E A CRÍTICA

Assistir aos filmes, desenvolver o olhar

Peguei-me refletindo no que mais pode ser dito sobre Café com Canela, longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa que estreou há pouco em algumas capitais brasileiras, depois do costumeiro percurso em festivais. Já li toda sorte de elogio, de enquadramento a maioria merecidos –, debates despertados. Meu texto talvez se fragmente então entre a descrição da minha experiência como espectadora negra, alguns conceitos que me vêm quando penso nisso tudo, e algumas cutucadas atiradas livremente.

Assisti ao filme pela primeira vez no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado (2017) e me lembro dos suspiros finais, das risadas com Cidão, uma das personagens, senti no rosto algumas lágrimas, mas a impressão final foi de confusão. Não consegui montar com exatidão um mapa da minha apreciação.

“Gostei, mas…” e aí? Ver tantos filmes ao longo de vários dias e encontrar amigas e amigos logo após a sessão com inquisitivos “achou bom?” põe a mente numa disposição que nem sempre privilegia a fruição. E aliás, quem é que está no festival para fruir? Tanto quanto está estampado nos rostos presentes o amor pelo cinema, estão também as tensões todas, políticas, de representação, de espaço, as disputas. Pelo menos no Festival de Brasília, que acompanho há anos, tem sido assim, cada vez mais. De modo ambíguo e um tanto triste, quase sinto falta de quando ignorava todos os discursos que atravessavam as sessões, de quando era só uma estudante de ensino médio que ia ao festival para descobrir filmes que sabia que não seriam exibidos na televisão. Era uma chance e eu aproveitava ao máximo, muitas vezes sem saber se haveria ônibus para voltar para casa.

Mas eu disse quase. Porque se outros conflitos – ainda que até então apenas internos – não me atravessassem, talvez não estivesse aqui, escrevendo sobre cinema, tentando participar (com alguma discrição) dos debates atuais. Foram anos e anos desafiando os filmes com o olhar, tentando entender porque as ausências tornavam as presenças mais fracas e menos saborosas. Daí: universidade, faculdade de cinema, bell hooks, olhar para si, testar-se cineasta, fazer cinema, fazer cinema negro e feminista, perguntar-se que é afinal cinema negro. De lá pra cá a fruição muitas vezes ficou em segundo plano, em função do olhar oposicional e do cultivo crítico. Ainda amo cinema? É claro que sim, ou não despenderia tanto esforço.

Em 1992, bell hooks publicou Black Looks: Race and Representation e daí vem um de seus mais famosos ensaios, O Olhar Oposicional: Espectadoras Negras (1). Entre as tantas contribuições maravilhosas desse texto, bell hooks explica o olhar oposicional, o olhar crítico e aplicado das mulheres negras sobre o cinema, um olhar outro que não o da identificação, da objetificação, do voyerismo, ou tudo que a teoria feminista queria descortinar, mas que não nos abrangia por completo. Mais que um conceito a ser aplicado de maneira automatizada (como aliás vem sendo ultimamente na academia), é claro para mim como o olhar oposicional descreve o estado mental que muitas mulheres negras aprenderam a cultivar para simplesmente estar nas salas de cinema, ver e assistir tantos filmes em que nossa ausência declarada em imagem e discurso poderia ter sido, anos após anos, uma completa mensagem de desistência.

Que mulheres negras não tenhamos desistido do cinema – após décadas do mais absoluto desprezo por nós – é o atestado empírico do que dizia bell hooks. Há algum poder no olhar, por menor que seja, e nos apegamos a ele com muita força, sem nem saber bem para onde nos poderia levar. Aguardamos, eventualmente chegamos a pequenas ilhas, lugares maravilhosos, como Café com Canela. E treinada, habituada ao olhar oposicional, crítico, construtivo, na companhia de colegas que fazem o mesmo, como é num festival de cinema, nem sempre consigo habitar com plenitude a ilha de um cinema tão raro para mim.

 

 

Café com Canela, a travessia

Rara também é esta experiência dúbia, então. De um lado, o olhar oposicional, que me permitiu possuir o cinema sem ser por ele possuída, de maneira que pudesse me encantar com o que está na tela, mesmo com a plena consciência do quase institucionalizado desprezo por imagens negras, e imagens negras femininas ainda mais. Com esse olhar assisti Café com Canela no festival, deixei-me atravessar por algumas emoções de maneira organizada, quis pescar referências, analisar linguagem, chegar a um veredicto, acompanhar esse importante momento político, uau, um filme desses, co-dirigido por uma mulher negra, não só selecionado como vencedor do prêmio do júri popular. Mas não me deixei possuir e nem me dei conta que podia.

Do outro lado, o que experimentei ao rever o filme na sala de cinema, eu e a tela, sem a pressão do veredicto, sem precisar me opor. Nos primeiros minutos de exibição, ainda nas cenas em que Margarida assiste a vídeo de aniversário do filho morto, escutei as risadas, vi a bicicleta, era meu aniversário. O tio dorminhoco que sequer segura o copo, talvez bebum, talvez cansado depois do trabalho, era meu tio. Margarida não parece minha mãe, mas de alguma forma é minha parente. Talvez uma tia-avó risonha que tenho. Risonha mas sofrida. O bolo do flamengo, a cervejinha, meu pai. Coxinha, bombom, rosa, toda sorte de alimento também para a memória.

Fui entrando, me acomodando. Foi fácil. A tristeza não trouxe desconforto. O filho morto são as duas filhas da minha avó, que tão cedo também morreram. Cidão é uma tia-avó minha que é uma figura. Ivan não é meu parente, mas é uma mistura de vários amigos, inteligentes, doces, engraçados, gays. Margarida e Violeta são tantas, e ao mesmo tempo são linguagem. Violeta é o próprio espírito do filme, o corpo/imagem pelo qual passaram depressão, renascimento, fome, nutrição, o jogo de equilíbrio que se fez veículo para a travessia espiritual em vida de Margarida.

E que promoveu também a minha travessia por onde nem sei, ali no escuro do cinema, diante de tão pungente representação daquelas experiências. Morte, impermanência, busca por sentido que não se encerra enquanto há vida, estava tudo ali. Ao final do filme, estava em lágrimas, pensei em tantas coisas sem nem saber que estava em ebulição. Senti que passara por uma sessão de fruição, pura e simples, guardei a oposição no bolso, não precisei me opor.


Política, enfim

Café com Canela é um filme fácil, e isso não é pejorativo. É facilmente reconhecível no cinema que se propõe a fazer, algo pelo qual estamos sempre aguardando, havia lugar para aqueles sons & imagens no meu eu espectador, certamente no de muitas pessoas, negras ou não. Se para mim a maior facilidade/felicidade residiu na fruição, para outros infelizmente talvez possa residir no encaixotamento. “É um retrato negro” seguido de vários bonitos adjetivos soa como reconhecimento, mas há um burburinho que denuncia certa condescendência.

É triste, a condescendência. Muitas vezes denuncia que aquele espaço está sendo aberto à força, digamos, duma voluntária aceitação do material artístico por valores outros que não o da arte. Ainda que as discussões internas já tenham superado essa falsa dicotomia arte/política (superaram?) é fato que existe um público que quer se emocionar, fruir, e espera, até mesmo sem saber, poder guardar no bolso qualquer nível de olhar oposicional que possam ter cultivado para não precisar abrir mão de gostar de cinema.

Se Café com Canela é um “bonito retrato negro”, talvez seja porque negra também é a vida, negra também é a arte, negros são também os espectadores. Isso é apenas um lembrete. Vale se esforçar mais nas definições, na descoberta do próprio olhar resistente que a crítica branca muitas vezes não sabe que tem, mas tem. Nesse caso, o olhar que não procura as profundezas da condição humana em narrativas negras. É um olhar que se imagina num lugar em que pode ditar o coeficiente artístico de uma obra, porque entende a função da arte e olha (de cima) para os filmes de pessoas negras/sobre pessoas negras como ainda carente, ainda por ser.

É o olhar que foge à sensibilidade – sensibilidade, não certeza – de que “o objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar a alma”, como disse Tarkovsky (2), e que ao cinema feito por/com/sobre pessoas negras não falta nada além de espaço, respiro, tempo e alimento para se desenvolver sempre e mais como cultivo da alma que é, e será. Se resta dúvida, sugiro assistir Café com Canela de novo. E de novo.

***

Para pensar sobre os rumos e possibilidades do cinema negro no Brasil atual, sugiro dois textos que alimentaram minhas reflexões e que possuem a virtude de expandir questões em vez de encaixotá-las. São eles: O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018, de Heitor Augusto, e a resposta de Juliano Gomes, Carta ao Heitor (ou Desculpe a bagunça ou Ao mesmo tempo).

(1): Uso o termo olhar oposicional presente na tradução do texto de Raquel D’Euboux Couto Nunes para o livro Traduções da Cultura (org. Izabel Brandão). Na tradução de Maria Carolina Morais, disponível no blog Fora de Quadro (de Carol Almeida), o termo usado é olhar opositivo.

(2): reflexão presente em Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovsky, no capítulo “Arte: Anseio pelo ideal”.

 

UMA MEMÓRIA POÉTICA NA CARNE

Uma distância próxima de mim

Escrever e, por que não, analisar meu próprio ensaio cinematográfico não é uma tarefa fácil. Sobretudo se penso que juntamente a esta análise deva vir uma imagem de quem sou e de onde vivo impressas em minhas curtas peças de espaço-tempo que, creio, descrevem minha existência nessa comunicação entre ‘ausentes’ – tenho muito que pensar sobre o ruído imanente entre eu e outras realidades de vida com as quais interajo quando mostro meus filmes. Se é com palavras que necessito me expressar nesse momento, tentarei divagar sobre as intimidades, sejam conceituais ou práticas, de parte de minha relação poética-existencial com esse cinema.

Aqui pretendo primeiro recompor imagens de mim e das referências que trago comigo – adquiridas em todas as experiências estéticas e de afeto que marcam continuamente minha memória e identidade cultural. Citarei também uma das minhas experiências em intervir no dispositivo cinematográfico, a partir das problematizações que essas mesmas referências trazem e que afetam diretamente a existência do meu corpo em consonância com o corpo coletivo – do qual eu sou agente ativo e objeto direto. Penso que aqui e agora para tratar com as palavras, necessito organizá-las como se me orientasse diante da câmera, que capta uma ação em sua essência mínima.

É a partir desse ‘eu’ que escreve, e do ‘eu’ que realiza cinematograficamente, que me arrisco em palavras no que se refere a esta síntese de mim: eu, mulher, negra, brasileira, nascida e criada numa periferia do nordeste brasileiro.

Construção material de imagens abstratas

Definirei, por agora, o cinema que produzo como um cinema de ensaio e autoral, em que o social ao meu entorno se mostra através dos universos e códigos simbólicos com os quais eu interajo: pessoas e conteúdos – que posteriormente passam pelo filtro de minha interpretação pessoal aliada a expressão de uma forma plástica marcada.

Tenho apreço por produzir imagens que conduzam a uma narrativa simbólica, encham os olhos do espectador e falem por si, somada a necessidade de criar um espaço de diálogo com os sujeitos que estão diante de mim – pretendendo que esses sujeitos se convertam em colaboradores na construção dessa representação, sendo posteriormente cúmplices de minha interpretação sobre seus próprios universos particulares.

Procuro retratar a população afrodescendente de forma intimista, buscando enquadramentos que favoreçam sua expressividade, deixando transbordar sua humanidade, muitas vezes tão fragmentada quanto perdida – não com o intuito de representá-lo, mas de manter, junto ao outro, uma relação de identificação e cumplicidade. Busco “personagens” e conteúdos que estão ao meu redor – eles representam minha própria existência e fazem parte da busca de minha própria identidade. Trata-se de uma ajuda mútua.

Uma memória poética na carne

Quando percebi o potencial da realização cinematográfica – em sua qualidade de produto cultural capaz de expressar profundas subjetividades humanas; e na mesma medida, quando tive a oportunidade de ampliar minha relação prática com o cinema, voltei primeiramente minha atenção aos problemas do lugar onde vivo e a minha condição existencial de “ser” nesse espaço, juntamente com outros sujeitos que de maneira direta ou indireta também contribuem para manter o brilho e os mistérios desse mesmo lugar.

Penso que meu bairro seria um lugar como outro qualquer, não fosse pelas pessoas que ali vivem, que fazem com que tudo ali seja amplamente singular. Seria um bairro como tantos outros, com os já conhecidos problemas de infraestrutura, cuja população está nas mãos do esgotado sistema de gestão pública dos recursos coletivos, para não falar de problemas de outras ordens. Sempre me senti composta dessas poéticas ao mesmo tempo em que sou também o resultado dessas problemáticas. Minha comunidade é considerada por importantes organizações institucionais como o segundo maior agrupamento urbano remanescente de quilombos no Brasil.

Ao observar a comunidade em sua vida cotidiana optei em colocar o afrodescendente como protagonista e tema principal do filme CAIXA D’ÁGUA: QUI-LOMBO É ESSE? (2013), realçando sua relevância histórica e sua capacidade de superar os problemas que historicamente o afetam. A motivação foi fazer uma homenagem à história dos descendentes de escravos que vivem em dos bairros mais tradicionais da cidade de Aracaju, capital do estado de Sergipe. Essa foi a minha primeira experiência cinematográfica, que abriu os horizontes subjetivos que estavam adormecidos dentro de mim. A partir dessa experiência, confesso: a minha concepção de mundo nunca voltou a ser a mesma.

Quando a ausência se torna presença

A luta pela valorização da imagem do negro a que me refiro nesse filme vem do reconhecimento dessas pessoas como seres com humanidade, cidadãos plenos, mesmo que suas histórias reflitam a violência da diáspora. A ideia foi mostrar à superação de seus conflitos, a beleza, a humanidade, a singularidade, a individualidade e a coletividade em toda essa poesia. A perspectiva que permeou todo o processo de filmagem foi fugir do “pornô miséria” cravado em inúmeros filmes etnográficos do passado, nas páginas policiais dos noticiários televisivos diários, nos livros didáticos institucionalizados e reducionistas e da publicidade desenfreadamente racista.

De natureza híbrida, o curta destaca a oralidade, recurso onde as vozes em off levam o tom da narrativa, agregando a essas imagens poéticas cenas de um ex-escravo chegando à cidade e resistindo em meio da urbanização desenfreada do comércio financiado pelo homem branco, seu antigo “dono”. Na pesquisa feita para o projeto do filme, me impressionou a falta de registro oficial sobre essa comunidade, como se ela não existisse há mais de 100 anos, fazendo a riqueza da região através do trabalho escravo nas grandes plantações de cana-de-açúcar em épocas coloniais; e posteriormente ao fim da escravatura, trabalhando nas novas formas de exploração modernas, como a limpeza das ruas, os trabalhos nas fábricas e nos trabalhos domésticos informais nas grandes mansões da cidade grande.

Em 100 anos, as fontes oficiais se esqueceram da população, e as pessoas esqueceram delas mesmos. A premissa era de fazer do filme um espaço em que os sobreviventes dessa história in memoriam pudessem retomar essa mesma fragmentada história, mas agora com poder e autonomia da fala.

A iconografia da fragmentação

O nome do filme CAIXA D’ÁGUA: QUI-LOMBO É ESSE? é a união entre o nome da comunidade Caixa D’Água mais a separação do nome Quilombo para acentuar a palavra Lombo, para fazer uma referência à carne e à pele castigada desses povos. No final do título existe uma interrogação, com o intuito de incitar todos os entes que compõem essa comunicação – os próprios moradores, os espectadores e o realizador – a responderem juntos essa pergunta, ou a partir dela buscar uma resposta ou uma significação.

A intento era construir um documentário através da reconstituição oral de fatos históricos reais e descrições das características físicas do bairro em épocas passadas que ainda estão frescos na memória coletiva dos moradores que vivem nesse agrupamento – todos eles descendentes diretos de escravos homenageados. Foram coletadas 55 entrevistas com moradores de idade entre 60 e 100 anos. Por cima, para ilustrar as vozes, imagens de seus próprios ambientes familiares e dos principais espaços da comunidade para compor o cenário do filme.

Nesses mesmos corpos e espaços foram projetados todos os arquivos públicos e particulares da pesquisa com intenção de mostrar que a história oficial invisibilizou sua importância histórica e sua própria presença física, suprimindo-a por entre construções modernas e da marginalização de suas práticas culturais. A partir dessa interação oral, há um processo de reconstituição da primeira ocupação desse espaço, feita por um ator (morador da própria comunidade) interpretando o suposto morador fundador desse quilombo – mescladas com as imagens dos depoentes (descendentes) vivos.

Algumas imagens fragmentadas servem como signos ilustrativos da concepção de oralidade: o vento que leva a areia, representando o tempo que leva a memória; o sol, simbolizando o fardo do trabalho; o morro, significando as inviabilidades sociais que fazem com que a vida da comunidade não mude até hoje; e o arame farpado, simbolizando as correntes de ferro pelas quais os negros eram amarados e torturados.

Esses símbolos estão presentes o filme de diversas maneiras: de forma abstrata, formando a linha do tempo em que a narrativa se desenvolve; simbolicamente, cortando as caras dos moradores quando falam de seus sofrimentos; compostos no cenário físico da comunidade, sendo o arame um objeto utilizado para pendurar as roupas nos quintais compartilhados; embolados arriba do teto, próximos de caixas d’água, simbolizando o encontro das falas, das vidas e da própria memória coletiva do lugar.

O início do filme tenta revelar a banalização da violência colonial e a desumanização da figura dos escravos, procurados como animais soltos na selva – através de antigos anúncios que descrevem suas fugas. Esses anúncios mostram de forma absurda as características físicas dos negros, como um escravo da nação Angola com “pernas finas, olhos arregalados, falta os dentes da frente”, ou a Suzzana “feia” de “lábios grandes”. Porém, os anúncios também mostram que essa população, mesmo em condição de prisão, nunca deixou de almejar por sua liberdade.

No filme, um negro trabalha a terra debaixo sol. De súbito, escuta um chamado. É a dita “liberdade” proclamada pela República de 1888. Começa então a busca de uma nova vida, agora como ser humano livre. Outros escravos e famílias também estão à procura dessa mesma condição de vida e, desses encontros, surgirão os novos tipos de agrupamentos urbanos, que se propagarão por todo o país, os chamados quilombos urbanos. Esse tema é o núcleo de toda a narrativa do filme e, em torno disso, outros temas vão surgindo, formando a rede de informações que mostra tanto o sentido poético quanto o social nessas narrativas.

A escolha da câmera analógica Super 8 como recurso estético e narrativo, e da fotografia em preto e branco faz com que viajemos no tempo para adentrar a reconstituição do passado desses relatos históricos. Já o Super 8 em cor nos insere no universo das imagens mais recentes de infâncias dos moradores, com suas cores lavadas e sua atmosfera familiar.

Por meio da utilização do dispositivo digital preto e branco adentramos na ilustração ficcional do personagem central no passado, como se estivesse acontecendo agora mesmo e em contraste o mesmo dispositivo em cor para a imagem real dos moradores depondo, como um recurso estético que, acredito, ajuda-nos a situar cada fragmento da história dentro de uma cronologia.

Busco transmitir os núcleos temporais de cada conteúdo em uma desordem fragmentada, harmonizada através da forma, das cores e da posição de cada parte dentro do todo narrativo decrescente, que parte de informações gerais de um povo e lugar, e chega a histórias particulares e familiares de cada depoente. Há a legitimação daquele espaço em sua importância histórica, econômica e cultural, como fruto da autorreflexão, da corporeidade afetiva e discurso homogêneo dos que falam.

Os relatos – com vozes simultâneas dos “personagens” – são fragmentados e novamente reunidos de forma com que todas as vozes convirjam para contar esse mesmo relato, uma complementando a frase da outra. O filme tenta resolver a conjunção entre uma linguagem poética e, ao mesmo tempo, a preocupação com a oralidade dos depoentes, com algumas soluções estilísticas, como exemplo: um desenho durante a narração da fundação espontânea de um cemitério infantil e sobre o qual não existem imagens reais, apenas relatos vagos. Esse mesmo desenho desaparece com o vento (tempo/memória), visto que os próprios moradores se contradizem sobre sua suposta existência. Algumas imagens de acervos públicos oficiais se contrapõem aos relatos dos moradores, pondo em dúvida a história oficial.

Um dos momentos mais íntimos e emocionantes do filme é a entrevista do cantor Irmão, in memoriam, concedida ao programa local de TV Aperipê em Memória (1991). Nas imagens de arquivo, depois de una breve fala, ele entoa uma canção que fez em homenagem a comunidade, intitulada “Só o povo”, que assinala o seu sofrimento e o sintetiza dizendo que “o povo é o problema, em vez de ser a gema de do sistema” ou seja, o centro do governo. Ao final ele entoa o neologismo “sofreviventes”, para referir-se aos moradores quilombolas. Esse artista independente, morador da própria comunidade, já tinha o conhecimento da importância da região, antes mesmo das instituições oficiais legitimarem esse espaço como Patrimônio Nacional. Ao final, os moradores, cada um em seu momento íntimo com a câmera que segue e indaga, olham para ela profundamente, proferindo com seus corpos um discurso de legitimidade de sua identidade cultural, e do orgulho de sua afrodescendência e história.

Por fim, o personagem principal abre os braços sentindo o vento que passa por seu corpo, enquanto grandes edifícios compõem o cenário ao fundo – uma leitura moderna do que seria a resistência da presença dessa população nos espaços urbanos contemporâneos, que cada vez mais suprime a existência comum do povo quilombola, ainda não adaptado às mudanças progressistas de um mundo capitalista e racista.

O filme tem quinze minutos de imagens reunidas em busca de novo significado afetivo para a cidade, imanada da voz dos moradores mais antigos do lugar – uma música executada em tom harmonioso, que transcende a partir dos tambores dos pontos de candomblé e das orações que, dia a dia, levam os moradores a buscarem suas próprias redenções. O filme é a possibilidade que eu tive de homenagear meus ancestrais e minha comunidade. Pretendo transmitir para as novas gerações algo que para mim é importante. Como moradora e artista, não emprestei somente minha pesquisa, como também minha própria carne para o contorno dessa poesia. Várias imagens também foram projetadas em mim.

Sem mais palavras

Por fim, esse texto é antes de qualquer coisa, uma forma de rememorar os momentos em que vivi imersa nesse universo tão íntimo e simbólico, e de também fechar um ciclo de relação com esse filme, que já está em seu percurso de quase 6 anos de existência. Foi exibido em vários cantos do Brasil e fora dele, levando a história dessa comunidade – e de outras tantas que têm essa mesma história – para o mundo; e abrindo as portas para uma nova possibilidade de pensar o mundo e seguir buscando novas narrativas, a partir da ideia de respeito às minhas origens e da busca pela beleza simples e complexa dos corpos imersos nessa dura realidade.

Despeço-me agradecendo a todos que colaboraram para dar a magia necessária a esse filme. Estou feliz e creio que essa pequena semente possa contribuir para gerar bastantes frutos. Espero que todos possam colhê-los e saboreá-los. O filme é nosso! O filme é de todos!


CAIXA D’ÁGUA: QUI-LOMBO É ESSE? | Doc. 15 min/ Colorido- Aracaju/SE – 2013 – LIVRE.

O documentário relata, através de depoimentos de antigos moradores e de acervo fotográfico, a importância cultural e histórica do bairro considerado como o 2ª remanescente quilombola urbano do Brasil, localizado em Aracaju, capital de Sergipe.

Prêmios

  • Melhor Filme (SERCINE/SE/2013).
  • Melhor Filme (Festival Ibero-americano – CURTASE/2013).
  • Prêmio Inventar com a Diferença (8ª Mostra de Direitos Humanos da América Latina/2013).
  • Melhor Curta-metragem e Menção Honrosa no V Cachoeira DOC/2014).
  • Melhor Direção, Melhor Filme e Melhor Direção de Fotografia no 9ª Encontro Nacional de Cinema (PI/2014).
  • Melhor Direção de Fotografia (Cine Favela/GO/2014).

Mostras e festivais

  • Convite para Abertura Festival Visões Periféricas/RJ (2013) e V Mostra Olhos Negros/RJ (2013).
  • 7ª Encontro Internacional de Cinema Negro Brasil, África e Caribe / ZÓZIMO BULBUL – RJ (2014).
  • Abertura Festival Internacional Brésil en Mouvements (Cinéma La Clef e l’Université Sorbonne, Paris (2014).
  • 8° Festival de Cinema Curta Cabo Frio (2014).
  • 3ª Bienal da Bahia – Museu do MAAN (2014).
  • 8ª Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha – Latinidades (2015).
  • Mostra Diretoras Negras Brasileiras – Brasília e Rio de Janeiro (2017).
  • Mostra Empoderadas Mulheres Negras no Audiovisual. – SP (2017).
  • Festival Internacional de Curtas de São Paulo – Kinoforum (2017), entre outros.

 

SER NEGRA NA TELA: ENCARANDO DE VOLTA A TELEVISÃO

Não apenas irei encarar. Eu quero que meu olhar transforme a realidade
bell hooks em The oppositional gaze (disponível em português aqui)

De volta a minha infância uma lembrança surge repetidamente: passar dias inteiros assistindo televisão. Sou da geração dos nascidos no início dos anos 1990 antes da popularização dos meios digitais, do advento da Internet banda larga e da possibilidade de se comunicar por redes sociais. E para uma pessoa que cresceu na periferia da cidade de São Paulo, onde os aparatos de lazer públicos sempre foram muito escassos, o medo e a insegurança fizeram com que meus pais tentassem proteger ao máximo a mim e ao meu irmão, logo ficar em casa assistindo TV sempre foi considerada uma atividade segura. Eu cresci assistindo de tudo, sobretudo aos programas da televisão aberta, já que os canais a cabo só chegaram em casa lá no ano de 2005. Era realmente fascinada por aquele tubo transmissor de sons e imagens, me encantava a representação da vida, as emoções que eram capazes de causar e minha rotina era pensada de acordo com a grade televisiva: acordava, tomava café já assistindo desenhos na TV Globinho ou no Bom Dia & Cia, almoçava vendo SPTV, ia para escola e quando voltava conseguia pegar o final de Malhação, emendando as três novelas da noite da Globo e algum reality show ou programa de entretenimento, sendo interrompida apenas para jantar e tomar banho.

A televisão acabava ocupando um espaço central na minha vida, que se materializava na configuração do lar. Ela estava ali, no centro da estante na sala, entre o rádio e as caixas de som de frente para o sofá e sua voz preenchia todos os cômodos do apartamento de 48m² da Cohab I em Artur Alvim. Assistí-la era também um ritual, momento de junção da família, lembro de alguns sábados à noite onde meus tios, tias, primos e primas se reuniam para conversar, comer esfihas e sentar frente à TV, não importava na casa de quem estivéssemos, ela estava sempre ligada, no centro da sala, quase como se conversasse conosco. Adorávamos comentar as novelas, mesmo que presas numa estrutura previsível onde o “bem” normalmente vence o “mal”, elas eram carregadas de emoções e de um certo sentimento de pertencimento bastante dialético. Apesar de serem ambientadas no Brasil, tratar de temas do cotidiano e dirigir-se a “todos” os brasileiros eu não conseguia me ver ali, não completamente.

foto de divulgação: Preta Portê filmes

Eu tenho uma tia, irmã do meu pai, que adorava o Xou da Xuxa e que sempre diz que durante a adolescência tinha vontade de ser paquita, mas como todas as paquitas eram brancas, loiras e com o cabelo liso, ela nunca poderia ser uma. Meu avô paterno era negro e minha avó paterna, apesar da pele clara, tem a boca e o nariz bem largos e o cabelo crespo, assim meus tios, incluindo meu pai, nasceram com tons de pele distintos, mas todos com traços negroides muito marcados. Sou filha de um casamento inter-racial: tenho a pele clara, cabelos carinhosamente apelidado por meu pai por “cabelo de prego” e traços negroides mais brandos. A racialização sempre esteve presente na minha vida, lembro de ser chamada de Medusa na escola, de alisar meu cabelo e de ser preterida pelos meninos porque não estava dentro do padrão branco de beleza e ouvir na escola que tinha “um pé na Senzala”, mas mesmo assim demorei alguns anos para construir minha identidade racial. E a televisão sempre esteve ali, como mediadora desse processo, fazendo-me refletir sobre quem eu era e sobre minha realidade a partir da ausência e da estereotipização.

Quando minha tia dizia que não podia ser paquita porque não era loira eu me perguntava, “Mas por que todas as paquitas da Xuxa são loiras?”, “Por que todas as apresentadoras são brancas?”, “Por que quase não existem personagens negros nas novelas se eu vejo tantas pessoas negras ao meu redor?”, “E por que os personagens negros nas novelas são sempre as empregadas domésticas, os seguranças, motoristas, serventes ou bandidos?”, “Por que a Cohab só aparece no Datena?”, “Onde estão as pessoas parecidas comigo? Onde está a minha realidade dentro desses programas que se dizem nacionais?”.

Para não ser injusta, lembro de duas personagens de programas infantis onde via meninas negras com as quais me identificava: a Biba, no Castelo Rá-tim- bum, programa da TV Cultura e a Pata, na novela Chiquititas, da primeira versão exibida pelo SBT. Eu assistia a muitos programas televisivos e, claro, que não podemos confiar apenas na memória para exercer uma análise mais profunda sobre determinado objeto, mas como posso lembrar apenas de duas personagens infantis negras? Ou melhor, como posso ter crescido com tão poucas narrativas sobre infâncias negras quando metade da população brasileira é negra?

Refletindo sobre essas questões chego a outro ponto em comum entre as personagens Biba e Pata: nenhuma delas eram mostradas em momentos com suas famílias, amigos negros ou frequentando espaços onde a maioria das pessoas eram negras. A escolha em Chiquititas é justificada pelo motor da narrativa, tratavam-se de crianças em orfanato, porém esse tipo de representação dos personagens negros sem nenhuma ligação com qualquer outra pessoa negra é comum em muitas narrativas seriadas brasileiras. As novelas de Manoel Carlos sempre me chamaram muita atenção quando parava para reparar nas personagens mulheres negras e seus lugares na narrativa. Suas novelas têm como marca a presença de uma personagem principal forte, a Helena, e é em volta dela que a história se desenvolve. História de Amor (1995), Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006), entre outras, sempre tiveram como núcleo principal famílias ricas do Rio de Janeiro. Tais tramas costumam girar em torno dos desejos, anseios e desafios de uma elite econômica majoritariamente branca, o que Joel Zito Araújo no livro A Negação do Brasil chama de “visão zona sul das telenovelas”. Em todas essas novelas é possível encontrar personagens negras mulheres na posição de empregadas domésticas que não possuem família ou relacionamentos com outras pessoas negras, ocupando a função de servir e estar à disposição das famílias abastadas.

Em 2009 nós espectadoras(es) fomos apresentadas(os) a primeira Helena negra de Manoel Carlos. Taís Araújo, que já havia inaugurado o marco de primeira protagonista negra com a telenovela Da cor do pecado (sim, deram o nome da novela a associação da pele negra ao pecado), viveu Helena na novela Viver a Vida (2009), uma modelo que enriqueceu com seu trabalho e que se apaixona por Marcos (José Mayer), um homem branco vinte anos mais velho. Ele a princípio era casado com Teresa (Lilia Cabral) e pai de três filhas, mas ao se separar da esposa conhece Helena e casa-se novamente. Este ensaio não pretende se aprofundar no desenvolvimento narrativo da trama, porém uma cena onde a personagem Helena leva um tapa no rosto de Teresa, enquanto está de joelhos desculpando-se por algo que não fez chamou muito atenção. O episódio foi ao ar no dia da consciência negra (20 de novembro) e muitos consideraram que a imagem apenas reforçou o estereótipo de submissão e desumanização das mulheres negras. Recentemente Taís Araújo deu uma entrevista dizendo que após essa novela afundou-se numa tristeza profunda e que a não possibilidade de transformar sua personagem numa mulher realmente forte a fez encarar que tipo de personagem queria ser e que tipo de papéis não queria mais representar.

A ausência e o uso excessivo de estereótipos sobre mulheres negras nas telenovelas televisão estão diretamente ligados a algumas características do gênero. O melodrama televisivo tem como influência os folhetins de jornal, as radionovelas e o melodrama cinematográfico. Tais filmes carregam em si um ideal burguês de sucesso e felicidade, que geralmente estão associados a ascensão social econômica. Possuem valores morais e sociais muito marcados, baseados no cristianismo, na heteronormatividade, no falocentrismo e na brancura como forma de beleza. É comum também ao melodrama os ditos personagens “planos”, ou seja, ou são extremamente bons, ou completamente maus, gananciosos, torpes, burros ou ingênuos. Dessa forma suas ações são regidas por apenas uma de suas características psicológicas tornando a narrativa bastante previsível. Dentro dessa estrutura enrijecida o uso de estereótipos se dá com muita frequência e são poucas as personagens, sobretudo as mulheres negras, cujas personalidades são regadas de contradições e humanização.

Na teledramaturgia brasileira tem sido dado às mulheres negras poucos espaços, apesar de fazermos parte de uma parcela significativa da população brasileira, quando não estamos ausentes nesses programas, ocupamos o papel da empregada doméstica, da mulher sensual (a “mulata”), da mulher ligada ao tráfico de drogas, da escrava ou da cuidadora. Só recentemente, em alguns programas seriados de TV aberta, mulheres negras foram representadas como pessoas fortes, com ambição, dotadas de conhecimento e agência de suas ações, como o caso de Isabel (Camila Pitanga) na novela Lado a Lado (2012) e mais recentemente Michele (Taís Araújo) em Mister Brau (2015). Entretanto, é importante olharmos mais profundamente para a ausência e estereotipização das mulheres negras na trajetória da teledramaturgia brasileira, a fim de elaborar algumas teorias sobre a representação negra e criação de imaginário.

É comum na configuração dos lares brasileiros que a televisão ocupe um lugar central na vida das pessoas, assumindo muitas vezes o papel educativo se pensarmos um contexto de baixa qualidade de ensino público, escassez de espaços de lazer e dificuldade de acesso à bibliotecas, teatros e cinemas. Ela enuncia comportamentos, valores, aponta o que é pauta de discussão ou não, promove alguns julgamentos, formula padrões e cria um universo simbólico estético que diz o que está dentro e o que está fora. Imagens estereotipadas, sejam elas extremamente positivas ou extremamente negativas, cumprem a função de controlar e desumanizar determinados corpos, num processo contemporâneo de colonização e imposição de valores eurocêntricos, no caso da representação das mulheres negras na TV, são imagens extremamente definidas a partir do olhar de um sujeito sob o objeto, o “outro” da narrativa e configuram uma forma de violência não material ou física, mas simbólica.

Crescer assistindo televisão me fez perceber que ora estávamos ausentes das histórias, ora éramos tidas como inferiores. E me interessa refletir acerca dessa experiência espectatorial, pois olhar para essas imagens me fez ter consciência de quem sou a partir do olhar de um sujeito narrativo quase imperceptível.

“Essas imagens criam o que se chama de um estado de despersonalização ou de alienação. Isto é, elas forçam o sujeito negro a desenvolver uma relação consigo próprio através do sujeito branco. E também forçam o sujeito negro a olhar para si próprio através da perspectiva do outro. Enquanto eu caminho na rua e olho para estas imagens, eu sou não só confrontada com o ato de alienação, pois eu vejo aquilo que eu não sou, eu vejo-me a mim ou a minha identidade ser representada de uma forma que eu não sou. Mas, sou forçada a olhar para mim através da perspectiva dominante do sujeito branco. E isto é muito problemático, isto é a base da alienação, trauma e decepção”.

Esse fala da artista portuguesa Grada Kilomba, que tenciona as questões identitárias e de representação em seus trabalhos, carrega o conceito de dupla-consciência, desenvolvido pelo sociólogo, historiador e ativista W. E. B. Du Bois. No livro As almas da Gente Negra publicado em 1903, Du Bois trata da experiência da pessoa negra americana na tomada de consciência de sua identidade a partir da rejeição do próprio ser, partindo da metáfora de que o negro seria como o sétimo filho, nascido com um véu e dotado de uma clarividência, num mundo que não o permite produzir uma verdadeira autoconsciência, mas sim entender-se a partir da revelação do outro, carregando dois ideais conflitantes: a experiência de ser um negro americano em um país que rejeita as pessoas negras.

Dessa forma, ser negro é tornar-se, é compreender-se a si mesmo a partir da métrica de um mundo que o contempla com prazer e desprezo. A valorização de uma cultura e de uma estética onde alguns sujeitos são mais pertencentes do que outros pode gerar um sentimento de não-pertencimento, de não-lugar, onde aquele que é preterido acaba por ter como referência a adoração de simbologias que o excluem. Recentemente tive uma conversa com minha prima, outra mulher negra, onde pude perceber mais concretamente essa dinâmica. Tanto eu quanto ela compartilharmos um processo de não aceitação durante a adolescência: não conseguimos nos olhar no espelho. Encarar nossa imagem era algo complicado e confuso, pois éramos permeadas de imagens negativas sobre mulheres negras, onde o padrão brasileiro de beleza é magro, loiro, cisgênero, branco e de preferência com cabelo liso, logo olhar-se no espelho e encontrar pontos que gostássemos era doído e o mais fácil era não se encarar.

A construção das identidades e o reconhecimento num contexto de diáspora contemporânea é um processo ambivalente, onde existe um entrelaçamento entre as fronteiras particulares negras. Entendo aqui diáspora sobre o prisma subjetivo, simbólico, uma metáfora para um tipo de consciência, modo de produção cultural, experiência intelectual e construção identitária. Um deslocamento contemporâneo, que é estético, político e cultural e que acontece no “entre lugar”, espaços de fronteiras culturais, intervalo entre as individualidades independentes onde podemos ver a iluminação e discussão dos problemas das diferenças, ou melhor, a “sobra” desses lugares onde surge a diversidade não contemplada pelas categorias hegemônicas.

Nesse novo contexto a discriminação racista e colonial das “metrópoles” tomam corpo na passagem de ideais e valores por meio de signos. Logo, re-trabalhar formas de subjetivação e positivação, a partir da quebra de estereótipos, por exemplo, deve culminar no desenvolvimento das potencialidades da vida social, participativa, solidária e cooperativa tendo a estética afro-diaspórica como uma ferramenta política, presente nas diferentes esferas de poder, que leve em consideração uma inserção ambivalente na modernidade.

No ensaio The oppositional gaze (1992), bell hooks parte da metáfora do olhar de enfrentamento do escravizado sob seu senhor para tratar do desenvolvimento de uma determinada agência, que surge a partir da habilidade de manipular o enfrentamento em face das estruturas de poder. Entendendo o poder como um sistema de dominação que pretende o controle, é a partir das margens que surge a brecha para a insurgência da agência. A televisão como um meio de comunicação em massa para as massas funciona como um sistema de conhecimento e poder que reproduz e pretende manter a supremacia branca e encarar essas imagens é encarar a negação da representação negra. O espectador, frente às imagens, compreende suas camadas de significado a partir de sua experiência, dessa forma, marcadores de gênero, raça e classe podem influenciar a maneira como essa subjetividade é preenchida pelo espectador e levam a diferentes interpretações do mesmo material.

Entretanto, não pretendo afirmar que todas mulheres negras frente às imagens de mulheres negras nas telenovelas irão necessariamente desenvolver um olhar de enfrentamento e construir sua identidade pela racionalização do não reconhecimento de si nessas imagens. Não é uma consequência direta, mas sim uma insurgência que pode acontecer e que está mediada por alguns fatores externos como a família, a escola, o trabalho, suas relações pessoais, sociais e outros.

A conversa com minha prima sobre olhar-se no espelho surgiu a partir do momento que assisti ao filme Kbela (2015), da jovem cineasta carioca Yasmin Thayná, onde num momento de auto cuidado e afeto entre duas personagens elas conversam sobre a experiência de não conseguir olhar-se no espelho e encarar a si mesma. Em 2010, a cineasta paulista Juliana Vicente escreveu e dirigiu o filme Cores e Botas, que narra a desilusão de uma criança negra que sonhava em ser paquita, mas que por não ser loira, é preterida apesar de seu talento, como a história da minha tia. Trabalhos como os de Yasmin Thayná, Juliana Vicente, Renata Martins, Viviane Ferreira, Everlane Moraes, Adélia Sampaio, Lilian Solá Santiago, dentre outras, roteiristas, diretoras, fotógrafas, montadoras e técnicas de som, todas negras, que surgiram na última década me ajudaram a construir um ponto de vista questionador sob as narrativas hegemônicas. Além de estarem construindo uma produção cinematográfica de enfrentamento, onde o objeto da estrutura narrativa passou a ser o sujeito, o autor – no caso autora – de suas próprias experiências.

Crescer assistindo televisão me fez entender a mim mesma como uma pessoa que possui múltiplas identidades que me foram reveladas pela ausência de pessoas parecidas comigo nas narrativas ditas “nacionais” e pela rejeição das imagens estereotipadas, entendendo a mim e a minha realidade sob a ótica do outro. Por mais que as telenovelas estejam sempre em busca da inovação, regidas, até certo ponto, pelas vontades do público e que eventualmente cedam espaços para narrativas positivas sobre mulheres negras, quando analisamos o todo ainda há um caminho muito longo a ser percorrido, e considerando a estrutura de poder a qual a televisão está submetida, penso que talvez não seja realmente de interesse a construção de narrativas que busquem a emancipação das mulheres na perspectiva antirracista. Porém, há de se considerar as brechas, tanto na relação espectador-telenovela, quanto na absorção de profissionais negras pelas grandes emissoras, mas sobretudo no circuito independente, que abrem caminhos para a construção de novas representações das vidas negras.

 


Referências

ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo, SP:
Editora SENAC, 2000. 323p;

hooks, bell. The oppositional gaze. IN: Reel to real: race, sex, and class at the movies. New
York; London: Routledge, c1996. 244 p.;

DU BOIS, William. As almas da gente negra. Co-autoria de Heloisa Toller Gomes. Rio de
Janeiro, RJ: Lacerda, 1999. 322 p.;

KILOMBA, Grada. Entrevista com Grada Kilomba, #1 Imagem e Alienação. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tzYljBG5H-c>. Acessado em 15 de
agosto de 2017.

Memória Globo. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/>. Acessado em 15 de
agosto de 2017.

REIS, Marilise. A Diáspora e o Movimento Social das Mulheres Afrodescendentes das
Américas. Florianopólis, SC: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais,
2011.16p.

HERANÇA DA MASCULINIDADE: UM LIMITE ENTRE NÓS

Um Limite Entre Nós é uma adaptação fílmica da peça teatral Fences, escrita por August Wilson, que conta a história de Troy Maxson, um coletor de lixo que mora em Pittsburgh com sua família nos anos 1950. Denzel Washington assume a direção e reprisa seu papel como o protagonista, que o mesmo interpretou no revival da peça na Broadway em 2010. Ele traz consigo para a tela boa parte desse elenco, incluindo Viola Davis no papel de sua esposa Rose.

Denzel optou por ser fiel a algumas qualidades teatrais da obra: a maior parte das cenas do filme se passa em uma única locação, onde eles conversam, discutem, resolvem seus problemas e também celebram alegrias. Ao mesmo tempo, há um incômodo por não vermos nunca vizinhos nem figurantes nos quintais ao redor, sempre vazios, o que desperta uma sensação de artificialidade análoga ao que encontraríamos no teatro. Os diálogos longos talvez possam ser estranhos para um público acostumado a um cinema mainstream que privilegia a ação, mas Denzel foi hábil em equilibrar essas características teatrais com uma linguagem cinematográfica. Além disso, as ótimas interpretações e uma mise-en-scène harmoniosa garantem nosso engajamento na trama.

A diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen emprega movimentos de câmera tradicionais, evitando extravagâncias estéticas e concentrando a atenção na performance dos atores. Em alguns momentos mais emotivos, entra a singela trilha sonora que ajuda a embalar uma atmosfera sentimental, acompanhada de uma aproximação leve nos rostos dos atores. Esses elementos, tão comumente usados no cinema para indicar ao espectador como se sentir, são bastante discretos no filme de Denzel. Essa estética sóbria ajuda a balancear os momentos mais dramáticos, em que a encenação poderia se tornar exagerada. Embora o trailer possa sugerir o contrário, esse excesso não acontece no filme.

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A história de Troy traz um ponto de vista bastante masculino. Rose é a única mulher do filme por quase toda sua duração. Outras mulheres são apenas mencionadas, mas nunca aparecem, com apenas uma exceção perto do final. Já homens existem em abundância: os filhos de Troy, Lyons e Cory, o amigo Bono, o irmão Gabriel. Rose também não tem uma trama própria, e todas as suas ações, vontades e desejos no filme estão relacionados ao marido. O que esclarece a indicação de Viola Davis a melhor atriz coadjuvante nessa temporada de premiações, ao invés de melhor atriz.

O filme gira em torno da insatisfação de Troy com o rumo de sua vida, frustrado pela discriminação racial e falta de oportunidades que lhe negaram o sucesso que almejava. Ele ainda mantém seu espírito rebelde e insubordinado, como quando luta para conseguir mudar para uma função melhor no emprego, que não era comum darem a pessoas da sua cor. Porém, o filme traz o tema da perpetuação da violência masculina que é passada de geração em geração: Troy impõe a seus filhos a mesma brutalidade que sofreu de seu pai. 

Ele não está imune às consequências de seus atos. Por vezes sente culpa e tenta reparar alguns de seus feitos, mas seus familiares estão sempre tendo que lidar com sua teimosia. É custoso ver como esses personagens são reféns dessa figura de autoridade patriarcal, o homem de família provedor que usa da violência para submeter os outros ao seu domínio. Há outros personagens que contrastam com essa figura, como o irmão Gabriel e o amigo Bono. Este último inclusive avisa Troy das ciladas em que pode se meter caso não mude seu comportamento. O próprio título original Fences se refere à cerca que Troy está construindo em seu quintal, que funciona como metáfora para essas relações conturbadas vividas pela família. Nesse caso, as entrelinhas poderiam ter conservado a força da analogia, que é excessivamente expressada por meio de diálogos no filme: “Algumas pessoas constroem cercas para manter os outros fora, e outras o fazem para manter os outros dentro”.

O filme mostra como o machismo de Troy prejudica sua vida, mas ainda assim lhe traz vantagens. Ele reconhece que as melhores coisas que viveu foram possibilitadas por Rose, que sempre esteve ali por ele. Mas esse reconhecimento se mostra apenas retórico em diversos momentos em que ele não só demonstra colocar suas próprias prioridades acima da dignidade dela, como espera que ela arque com as consequências das irresponsabilidades dele. Além disso, os outros ao seu redor acabam sendo condescendentes com suas loucuras e até o tratando com uma certa veneração. Isso demonstra o motivo pelo qual a agressividade masculina é passada de geração em geração, e como os que se opõem a ela encontram tantas barreiras para estabelecer uma mudança sistêmica na sociedade.

Como Rose diz em um momento, o mundo mudou em vários aspectos, só que Troy não percebeu. Cory, herdeiro do espírito rebelde de seu pai, promete jamais compactuar com ele novamente. O filme sugere, porém, a possiblidade de que justamente o perdão seja uma saída para quebrar o ciclo dessa violência masculina e seguir em frente, coisa que Troy jamais conseguiu fazer por seu próprio pai.