Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

QUANDO NÃO SE PODE NEM MESMO NOMEAR A VAGINA

“Os homens que eu tive”. No contexto em que essa frase se formula, o eu, saberemos, se refere a uma mulher. Ter é, a princípio, em nosso léxico linguístico, possuir, no sentido de ter posse de, mas também usufruir, desfrutar, gozar, significantes que, veremos, definirão ainda mais o destino de tal sintaxe. Por fim, os homens, o plural de homem — aqui não genérico de humanidade, mas indivíduo do sexo masculino — se refere a muitos, vários deles. 

Não há dúvidas, pois, que esse enunciado subverte a lógica machista estruturalmente arraigada nas nossas relações, comportamentos e hábitos, portanto, definidora de nossas mentalidades com seus modos de ver e conceber o mundo social. Tal lógica de base patriarcal sustenta e é sustentada pela ideologia a partir da qual, realmente, “alguém possui alguém”: o homem a mulher. E nesse caso, possuir conota desfrutar não só como usufruir — ter prazer com aquele corpo — mas, submeter o corpo feminino ao prazer masculino, tomar a vagina como ausência, buraco, que só existe ao ser preenchido pelo pênis. Daí os significantes de dominação e posse sexual: comer, traçar, fuder. Do campo sexual, o possuir como dominar se estenderá ao político: comandar, governar, subjugar. Chegamos enfim ao modus operandi do patriarcado.

Ao nomear seu longa-metragem brasileiro, realizado entre 1972 e 1973, como Os homens que eu tive, a cineasta Tereza Trautman expõe, em plena ditadura militar — exercício totalitário do poder masculino no cerceamento das livres formas de expressão —, seu contrapoder feminista na forma de materializar aquilo que seu filme enuncia. Trata-se de um dístico que já é em si o manifesto daquilo que a narrativa cinematográfica de Trautman guarda em sua fatura: colocar em cena uma personagem mulher que, por sua vez, coloca em crise os desmandos patriarcais, com seus dispositivos disciplinares de moralização e salvaguarda do corpo feminino, não através de ataques diretos, mas pela naturalização do feminino em sua vivência do erótico e da liberdade sexual. Lembrando que, para Audre Lorde, “o erótico não diz apenas do que fazemos, mas da intensidade e da completude do que sentimos no fazer” (2019, p. 69).

Através de uma mulher protagonista, Pity (Darlene Glória), a quem a câmera acompanha o cotidiano sem cessar, ao longo de todo o filme, outra mulher, a cineasta, vai malograr os brios da sociedade falocêntrica — aquela que tem o falo, o pênis, em seu centro — ao não necessariamente inverter a lógica do quem come quem, portanto de quem domina quem, pois fazer isso igualaria seu posicionamento àquele que ela mesma critica (o machismo), mas ao questioná-la e assim subvertê-la. 

Tal questionamento, como já dito, é indireto pois o dispositivo — formal, narrativo, e performativo — do filme funciona muito mais no sentido de virar as costas, portanto de suspender, como se ela (a dominação masculina) não existisse em pleno anos 70, tempos completamente abafados pela ideologia patriarcal, em que tradição, família, propriedade aparecem no ápice dos valores moralistas e conservadores, de base direitista-militarista, como posse masculina, sobre os quais a mulher não tem menor intervenção, nem possibilidade de reinvenção, ao contrário, a ela só resta zelar e conservar. 

O problema é que esse caráter de suspensão da dominação, ao não tratar de trazer o inimigo para o campo de batalha cinematográfico e ali enfrentá-lo, como poderíamos considerar acerca dos documentários militantes do contra cinema de mulheres dos anos 70, como os de María Luisa Bemberg, na Argentina; Carole Roussopoulos, na França, Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, e Helena Solberg (no Brasil e nos EUA), e mesmo algumas ficções como Amor Maldito, da cineasta brasileira negra Adélia Sampaio — pode não só ser subversivo, mas ainda mais potente do ponto de vista feminista. 

Através da entrega completa aos quereres, ao comportamento, ou seja, as formas múltiplas de subjetivação da protagonista feminina que namora, transa, e se junta a vários homens, ao mesmo tempo, e ainda cuida de si mesma, erotiza seu ser no mundo, sem ser ou sofrer o estigma da prostituta, Trautman parece não insultar o inimigo, nem mesmo querer tratar com ele, mas abrir uma fenda para uma vida possível. Ao mostrar quão normal essa vida poderia ser, na agência de Pity sobre os seus sentimentos e relações, que mesmo em sua vida libertária, sofre, duvida, se transforma, e precisa estar só consigo mesma, ela menos idealiza um mundo do que o expõe como humanamente possível, independente do machismo. 

Com Os homens que eu tive, tudo se passa como se  em vez de fazer da cena, ou do cinema em si, um terreno de disputa que desse lugar também ao discurso machista para dele se contrapor, Trautman tivesse simplesmente ignorado tal discurso e construído com o cinema um mundo possível, onde as mulheres, na figura de Pity, poderiam ser o que quisessem pois seriam donas de seus corpos e desejos. Abre-se assim um cinema, como faria Barbara Hammer também nos anos 70 nos EUA, em relação à vivência lésbica, para que o ser mulher supere o assujeitamento aos desmandos capitalistas-sexistas: heteronormatividade e casamento compulsório, família e maternidade instituídas segundo tais normas. Aí pode-se dizer que aos olhos patriarcais-militares da época, a cineasta nomeia a vagina na experiência feminina, não aos moldes do falocentrismo1, mas trazendo a mulher e seu corpo para o centro da cena. Sem fazer de ambos objeto do deleite pulsional do olhar masculino (como o male gaze do qual nos fala Laura Mulvey), o filme, ao contrário da tradição industrial cinematográfica, elabora a mulher como aquela que é verdadeiramente protagonista, pois devolve-lhe sua vagina para qual ela mesmo pode olhar com erotismo, e pode experimentar com outros sem ser prostituta ou carregar o emblema negativo que a história machista conferiu a profissão. 

O erótico é um recurso intrínseco a cada uma de nós localizado em um plano profundamente feminino e espiritual, e que tem firmes raízes no poder de nossos sentimentos reprimidos e desconsiderados … para se perpetuar, toda opressão precisa corromper ou deturpar as várias fontes e poder na cultura do oprimido que podem fornecer a energia necessária à mudança, no caso das mulheres, isso significou a supressão do erótico como fonte considerável de poder e de informação ao longo de nossas vidas. (Lorde, 2019, p.67) 

Nesse sentido, Os homens que eu tive enfraquece o poder fálico, e anula a submissão feminina, ao tirá-lo da cena para encenar outra forma de vida, de desejo e de relação com o feminino. 

Mesmo se apresentando como uma abertura para igualdade e não para a supremacia de qualquer gênero, Tereza Trautman nomeia o problema do machismo, como o feminismo sempre buscou, ao pleitear um lugar também para o corpo feminino e, portanto, descentralizar o pênis. Assim, o que o filme opera já é suficiente para ser lido como ameaça ao falocentrismo, portanto motivo cabal de censura na época. Não à toa o primeiro corte da censura, ainda no ano de lançamento, incide em cenas, mas também no título –– que conforme sugerido pela própria produtora deveria passar a ser Os homens e eu

Contudo, as revelações sobre o aparelho de controle e condenação desse filme não param por aí, e é digno de avaliação cuidadosa o tamanho do dano que ele parecia causar nos brios do poder militar, governamental, institucional, cinematográfico. Dentro da instituição cinema de uma época, na qual a pornochanchada era dominante como produção e mercado, em que mulheres nuas e conteúdos obscenos eram comuns, o filme de Trautman não representaria nesse quesito nenhuma ameaça a mais. Numa censura que deixava passar filmes como A viúva virgem, de Pedro Carlos Rovai, também de 1972, ou Como é boa nossa empregada (1973), de Ismar Porto e Vitor di Melo; e em que Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor — de mesmo ano e com a mesma atriz de Os homens que eu tive, Darlene Glória, mas que faz ali o papel de uma prostituta —, é censurado, mas retorna às salas de cinema um ano depois2; não se tratava de preservar a moral familiar, mas de reinstituir uma moral que fortalece a figura do homem sobre a mulher. 

Com Pity, a mão masculina será muito mais pesada, e ela parecerá bem mais perigosa, quando imaginamos que o filme de uma jovem cineasta de 22 anos pode balançar uma construção patriarcal secular em pleno regime militar quando os jovens subversivos e adeptos ao estilo de vida hippie eram considerados delinquentes. Porém, ao questionar o modelo da família burguesa de dentro dela — uma vez que Pity é uma mulher branca, estudada e de classe média do Rio de Janeiro, que frequenta a praia de Copacabana com os amigos e mora num apartamento bacana na zona sul da cidade —, a agência da mulher tida como recatada e do lar se torna uma realidade possível. A personagem não só se afasta daquela figura abjeta — a da prostituta de Jabor, totalmente humilhada no filme —, construída ao longo de séculos como um desvio (da bruxa3 à vagabunda), mas também inquire tal visão. 

Tereza Trautman nos conta que a personagem foi totalmente inspirada em Leila Diniz, uma atriz carioca, lindíssima, que chocava a sociedade brasileira com seu pensamento libertário, suas roupas sempre insinuantes, e seu palavreado “pouco feminino” (ela falava palavrões aos borbotões) e assumia sua sexualidade de modo aberto (era “desbocada” no vocabulário da época). Famosa por ser a primeira mulher a usar biquíni grávida, e dar uma entrevista ao famoso semanário Pasquim, em 1969, dizendo, entre muitos depoimentos que afirmavam sua autonomia feminina: “Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo”, Leila morre em um acidente de avião no mesmo ano, 1972, em que começava ensaiar junto à cineasta cenas para Os homens que eu tive.

Se a associação com Darlene Glória, que viria a ser a atriz escolhida por Trautman para interpretar Pity, vai além de sua atuação no filme, mas nos permite traçar a relação com a figura cinematográfica da prostituta que ela encarna na mesma época no filme de Jabor, a associação com Leila Diniz também vai além do espírito contracultural que sua personalidade mobilizava para o longa já em seu roteiro. Ela nos lembra quão despolitizante do ponto de vista feminista pode ser a leitura de Os homens que eu tive como um filme que expressa e condensa em si o ideário hippie, que pode ser, na desculpa da abordagem histórica, bastante redutora. Leila não era uma hippie, ao contrário, era uma atriz de cinema, de classe média-alta, que frequentava o showbiz do Rio de Janeiro, e que empunhava a bandeira de que era possível ser mulher insubordinadamente no seio daquela sociedade. Não há dúvidas que o filme (e tal visão se encontra nas muitas críticas a ele destinadas), feito e passado nos anos 70, se refere ao momento de muita força de um ideal hippie que valoriza o amor plural, a abertura aos experimentos sensoriais e ao poliamor. Contudo, tal leitura pode ser feita para desmerecer a potência política da liberdade sexual feminina no filme buscando associá-lo à visão pejorativa do estilo hippie como um idealismo encampado por pessoas loucas, desgarradas, usuárias de drogas que vivem a vida sem compromisso e na vagabundagem, que representava e ainda representa um problema para o progresso capitalista.

No filme, temos uma mulher casada que tem relações consideradas extraconjugais, sem que os homens que estão com ela se perturbem com isso, e que constata sua crise não em relação ao marido, mas em relação aos seus desejos, que ainda que vividos com autonomia, não lhe parecem encontrar os múltiplos caminhos que necessita para se realizar. É no momento que o marido, Dôde (Gracindo Júnior), se magoa e se afasta, pois percebe que Pity agora não está apenas dormindo com outro, mas apaixonou-se, que entra em jogo uma problemática existencial da liberdade que a protagonista precisa enfrentar. É menos portanto questionar a abertura sexual do que os modos de lidar com seus sentimentos e com os dos outros, enfim, um confronto que ultrapassa modelos de conduta e que está na gênese da experiência da não monogamia e seus desafios. É preciso ler tal contenda como instituinte do espaço da liberdade e da diferença, independente de gêneros e de lugares hierárquicos que a eles se imputam. Pity precisa então de seu espaço, de ficar só, até novamente se reencontrar na coletividade de uma casa comunitária rodeada pela natureza, do pintor Torres (Milton Gonçalves), onde vai morar com a amiga. Lá ela se volta para si mesma, para seus escritos, e seu corpo, que transita pelos espaços ainda de forma erótica, no sentido de que a sensação de existir e de fazer algo dessa existência ainda a move. 

Por outro lado, uma leitura que também enfraquece o feminismo em Os homens que eu tive é aquela que minimiza o ideário hippie, mas o faz para dizer que Pity, como qualquer outra mulher, continua a buscar por uma família, pela maternidade, ou pelo amor, ainda que em formatos e composições diferentes. Dizer que há mudanças no que seria o modelo patriarcal de família pode parecer um passo, mas é insuficiente para      que a perspectiva feminista possa ser um projeto político decantado pelo filme, quando ainda é por ela que Pity clamaria. Essa leitura enfatiza a realização da mulher na família ainda que desconstruída, em vez de se ater ao traçado da personagem no tempo de sua vida que o filme nos permite acompanhar. Tal traço compõe uma condição feminina em que o erotismo e a sexualidade vêm antes de qualquer busca familiar, portanto a chave está em olhar para a forma como o corpo de Pity é conhecido e vivido por ela com paixão e desejo de existência. A família, portanto, não é um fim para ela, mas as relações se fortalecem na medida em que seu corpo é liberto e aberto para experiências contra as amarras da vida doméstica imputada à mulher nos anos 70. Portanto, falar de família, nesse contexto, é evocar a dona de casa4, que a protagonista não é quando se muda de um canto para outro, e produz seus escritos como forma de elaboração de si. Falar de família seria evocar a maternidade como destino da mulher porque ela porta um útero, contrariando, assim, os postulados de Simone de Beauvoir. 

Em Os homens que eu tive a chegada à maternidade se dá depois desse traçado, não linear ou evolutivo de Pity, mas a partir de seu desejo de interação com a infância, quando em certo momento o casamento de sua irmã se mostra falido e ela passa um tempo junto aos sobrinhos, brincando e rindo com eles. Além disso, é na bela cena final quando confessa estar grávida e se nega a nomear um pai, que se desbanca mais uma vez o modelo patriarcal de família. Nesse momento, a câmera de longe acompanha o encontro da protagonista com Dôde (de quem ela não se separou, pois tal burocracia não parece relevante) e Torres, e pela conversa fica explícito que aquele filho será cuidado por muitos. 

Numa visão atualizada de Os homens que eu tive pelo feminismo, ressentimos a escolha pelo universo branco e de elite. O racismo e o classismo não são problemas expostos à época por Tereza Trautman. Porém, o caminho talvez seja pensar que se o recorte é limitado, as questões sexuais, maternais e familiares que o filme traz ainda estão em disputa, e o quanto elas se complexificam nesses outros cortes interseccionais, para seguirmos nomeando os problemas e olhando os corpos das mulheres não como falta mas como presença.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. Vol. 1, Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971 [1963]. 

LORDE, Audre. Usos do Erótico: o erótico como poder. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Editora Autêntica, 2019. 

BRASIL, Samantha. Tereza Trautman e Os homens que eu tive. In: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila. Mulheres atrás das Câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

MULVEY, Laura. “Prazer Visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983.

SAFFIOTI, Heleieth e Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

VEIGA, Ana Maria. Estéticas e políticas de resistência no “cinema de mulheres” brasileiro (anos 1970 e 1980) In: HOLANDA, K. (org.). Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2019. 

OS JOVENS BAUMANN É UM FILME DE VESTÍGIOS

Os Jovens Baumann é um filme de vestígios.

Se por um lado o filme nos faz adentrar nas férias de verão de herdeiros de um cafezal, a família Baumann, uma atmosfera que parece trazer um diálogo com a frivolidade presente em filmes como Bling Ring ou Maria Antonieta de Sofia Coppola, por outro, o suspense do found footage (vídeos caseiros encontrados) nos imerge na busca em desvendar o mistério do desaparecimento dos primos.

A estrutura narrativa também traz junto consigo a nostalgia da década de 90. Mas a força motriz, a principal chave de leitura me parece ser o contexto geográfico e social inscrito na certidão de nascimento de cada um dos desaparecidos da família Baumann. O suspense extrapola a simples questão pessoal do desaparecimento desses personagens e expõe junto também os vestígios de um passado colonizador tenebroso.

A questão da herança colonial nos implica perguntas que vão muito além da primeira máxima que surge: o que aconteceu com os Baumann?

 

O filme coloca em cheque toda uma estrutura de poder que nos faz refletir sobre as possíveis causas do desaparecimento dos primos e até imaginar o possível fim que os Baumann tiveram.

Mas a tensão aqui é histórica e as perguntas que vem à tona são atravessadas pela máxima da memória, da história e do esquecimento de um país.

Diante do contexto de escrita da história do Brasil, estruturada no apagamento das nações fundantes dessa terra Brasil: como negros e indígenas, é potente enxergar a fissura no tempo que se cria nos Jovens Baumann e a oportunidade de se colocar em perspectiva o próprio presente repleto de vestígios colonizantes ao olhar para o macabro passado escravocrata brasileiro.

Nos Baumann, o suspense aflinge a memória do colonizador. É ela que está em risco. Ela que é apagada. Ela que desaparece.

A partir da criação dessa fissura no tempo o filme faz parecer ser possível redesenhar a própria história do país a partir da lembrança das tensões escravocratas que permeiam nosso passado e insistem em ser sistematicamente esquecidas, ora por incêndios em museus ora pela negação da urgência de reparações históricas.

CRÍTICA OU AUTO-AJUDA: ASSISTIR A MUITO ROMÂNTICO FOI MUITO ROMÂNTICO

Esse texto deveria ter sido escrito há muito tempo, quando o Muito Romântico não saía da minha cabeça, mas não estava interessada em investigar as fronteiras entre a ficção e o documentário tão presentes no filme. Também não queria tentar desvendar qual é a nova sacação do cinema contemporâneo, muito menos se tratando de filmes brasileiros, tão díspares e marcados por um cenário histórico cheio de curvas e buracos. Na época queria apenas suspirar por escrito e dizer que assistir Muito Romântico foi muito romântico, porém a ideia foi se tornando mais ambiciosa.

Já faz mais de um ano que o filme estreou nos cinemas brasileiros, assisti na última sessão antes dele sair de cartaz, lá no Cinema Itaú do Casapark. Passado o tempo, a empolgação não é mais a mesma, as coisas mudam, o viés desse texto já mudou, mas minha procrastinação ainda persiste em me atrapalhar a fazer coisas importantes. Sou medrosa e prefiro sonhos megalomaníacos à realidade dispendiosa. Mas escrever esse texto virou uma questão de honra e fechamento de um ciclo, tenho que aprender que somos formigas empilhando grãozinhos!

A partir dessa minha frase de autoajuda, lembro também de um ótimo conselho que o filme me deu: em uma das primeiras sequências, Gustavo, interpretando ele mesmo (Gustavo Jahn, o diretor e roteirista do filme), coloca um papel de parede no seu apartamento com a ajuda de um amigo, esse por sua vez diz a ele que precisam se concentrar mais no trabalho, que tem certeza que ambos ainda vão fazer coisas brilhantes. ‘‘Não dá mais pra desperdiçar tempo com festas, pessoas, drogas, bebida, você sabe. A gente precisa produzir”, afirma o amigo alemão.

Em seguida entra em cena Melissa (Melissa Dullius, a também diretora e roteirista do filme), a outra moradora do apartamento de um cômodo só, ela segura um espelho bem grande e pesado. Melissa e Gustavo são um casal de cineastas brasileiros arrumando a vida em um novo apartamento em Berlim, cidade em que moram faz alguns anos. Os dois penduram o espelho na parede, o amigo se observa nele e em seguida os dois também repetem a ação. Coloco aqui esse momento como um exemplo marcante de uma presença que acompanha todo o filme: a observação da vida, das coisas, pessoas, hábitos, memórias, sentimentos e até das mudanças estéticas de Berlim. Acho que o argumento do filme é uma revisitação à toda relação do casal que cresce para além deles e movimenta mais pessoas e situações, mesmo o carvão da narrativa sendo eles.

Muito Romântico é a junção de muitos grãozinhos empilhados pelos dois realizadores, nove anos de grãozinhos de haleto de prata que formam uma bela pirâmide faraônica. Apesar de ter estreado na Berlinale e ter conseguido distribuição no Brasil, sinto que o filme não foi totalmente descoberto ainda. Gostaria de poder conversar com mais amigos do cinema sobre esse filme, assim como fazemos com outros que seguem uma produção bem mais industrial e setorizada. Em uma entrevista para o canal no Youtube da Ccine10, Melissa revela que a forma como o filme foi feito é um reflexo da forma como eles sempre fizeram cinema, desde o começo, independente e colaborativo.

É um trabalho árduo e analógico, filmado em película. Começou com filmagens realizadas no navio cargueiro os levando à Europa, e nove anos depois se transformou nesse filme, que se inspira em histórias que aconteceram e cria outras, como diz Gustavo na entrevista para a 40ª Mostra Internacional de Cinema. Eles se expõem com ousadia, mostram seus próprios desafios e fraquezas, os sentimentos vividos em cada fase da vida, uma vida cinematográfica e corajosa. Acho necessário enfatizar esses adjetivos.  

Falando em coragem, acho justo dizer que quando escavei esse filme não estava sozinha, estava com meu ex-namorado em nossa última (e única) comemoração de aniversário de namoro. Nosso relacionamento estava naquela crise que antecede o término. Por ideia minha fomos ao cinema para ver se as coisas melhoravam. Esse passeio prometia ser a solução para o meu coração angustiado, mas o silêncio entre eu e ele era brutal e irreversível, apesar do blazer e da camisa social que ele vestiu para fazer graça e me deixar constrangida naquele lugar chique.

Lembro bem desse dia e do filme, não consigo pensar neles separadamente. Foi uma experiência de catarse a longo prazo, um ano maturando pensamentos. Na época o filme me fez refletir a busca do casal por individualidade, a origem da inspiração artística e outras coisas mais sensoriais e emotivas que filmar em película cai muito bem, escolha deles que vai além do atual fetiche pela imagem com grãos, afirmo isso porque sei que, lá em 2011, eles já deram um oficina de revelação de película no Janela de Cinema em Recife.

Assisto ao filme de novo para escrever esse texto, e constato que algumas dessas inquietações já foram iluminadas, a partir de então nasce um olhar mais teórico e formal, que busca referenciais interpretativos e comparativos para compor esse texto.

De primeira, do que mais me lembrava era a voz calma de Gustavo, junto às imagens veranis azuis e vermelhas bem combinadas que relaxavam e acalentavam as minhas mãos geladas e meus olhos cabisbaixos que não viam nada bonito há tempos. Lembro que peguei na mão do meu ex, para aquecer a minha, era como se quisesse também que a voz do Gustavo fosse a dele, e que me deixasse calma, mas ele soltou a minha mão bem rápido sob o pretexto de comer pipoca.

O filme começa com imagens realizadas pelo casal em um navio cargueiro, um filma o outro em diferentes momentos da viagem. É interessante observar como um amante observa o outro. As imagens são da época em que eles partiram do Brasil em direção à Alemanha, isso é contextualizado através de uma carta a uma amiga que Gustavo lê em voice off contando o quanto eles estão otimistas com a nova empreitada. Começa aí o resgate da memória, relembrando uma época que já passou mas como se estivesse acontecendo naquele tempo cênico. Essa escolha será feita também em outros momentos como os da leitura de diários antigos. O próprio Gustavo diz em uma cena que são escritos para o futuro e não para o presente.

O processo estético do filme mescla o fazer experimental com o documental e o ficcional, mas defini-los cartesianamente não é relevante porque não é possível mapear perfeitamente as fronteiras de cada dentro do filme. Não saberemos o que aconteceu e o que não aconteceu, se o bilhete de amor que Gustavo encontra nas coisas de Melissa foi de fato real ou não. Foi real para os personagens, assim como todo o processo de Gustavo se tornar um Dom Casmurro de apartamento e de Melissa se sentir sufocada, como representado na cena em que ela emerge afoita de um mar de roupas.

A narrativa cresce em uma estrutura de ficção que possui um suave arco dramático com início, meio e fim culminando na abertura de um buraco negro que rompe o tempo e o espaço num cantinho da parede do apartamento. Há um uso do Deus Ex Machina sem receio, subversivo. No entanto, a estrutura narrativa é secundária, menos importante que as sensações que jorram de forma picotada, alternando o ritmo entre veloz e musical. O filme valoriza o que é feito a mão, o Do It Yourself punk que guia os Black Bananas sem medo do ridículo, e isso é tão sentido que o espectador relaxa na cadeira do cinema e ri.

Cinema é um fluxo de energia muito potente, e isso me lembra da parte do filme em que era exibida uma sequência de fotografias passadas rápidas, o movimento delas gerava um estrobo na tela do cinema e esse movimento das imagens aliado ao jeito barulhento como eu comia a pipoca e tomava o refrigerante no canudo deixou meu ex tão louco que ele apelou e começou a chacoalhar a pipoca e abrir e fechar a garrafa da Coca-Cola cheia de gás, criando um som de chaleira musical ou um beatbox desconsertado, rimos alto na sala quase vazia e o clima ficou mais leve, a energia da tela foi recebida e dispersada partir da recepção particular de cada um. Ressalto que a relação público e obra não é passiva.

O filme é uma colcha de retalhos feita de pedaços assimétricos costurada por mãos que não usam dedal, como vemos a metalinguagem, de forma literal – mesmo –, na cena em que os personagens ateiam fogo em uma colcha de retalhos, criando uma representação tangível do discurso do filme, de misturar tudo e ao mesmo tempo negar conceituações. É defendido que a sensação é mais importante que a narrativa, o sentir é diferente e mais importante do que o saber.  Ativar sensações se torna mais importante que qualquer limite formal, que a união racional de acontecimentos e que apego à mise en scène, características do cinema clássico. Ideias que pertencem ao conceito de cinema de fluxo desenvolvido pelo pesquisador Luiz Carlos Oliveira Jr(1).

E quanto à mise en scène, há um processo intenso de autofabulação pelos personagens-roteiristas, e esse conceito é abordado pela pesquisadora Mariana Baltar. A partir desse estudo, fica a reflexão e a curiosidade de saber como foi a preparação para performar em frente às câmeras do Muito Romântico, pois há um confrontamento direto do eu e do facework, autoimagem que o indivíduo adota ao interagir com os outros em diferentes grupos, nesse caso com os amigos que participam da produção e com o público.

Não é possível constatar de forma clara os momentos em que essa gestão da autoimagem dos personagens é visível, ou que ela vem a falhar, ou até mesmo os momentos nos quais essa falha é criada intencionalmente no roteiro, comparando esse filme com ”Jogo de Cena” do Eduardo Coutinho, por exemplo. Falhar nessa gestão da autoimagem significa revelar alguma ação não prevista ou previamente refletida, como uma fala espontânea e talvez embaraçosa, o riso, o choro, a gaguez e etc.

Eles parecem muito à vontade dentro desse universo que criaram, não é possível perceber o desconcerto frente ao dispositivo cinematográfico, dialogam face a face sem timidez, enfrentam a câmera, outros personagens, equipe e o público. Houve algum momento de falha na gestão da autoimagem nesses momentos de interação intersubjetiva? O que no feitio do filme eles não conseguiram controlar? O que descobriram nesse processo? Fica a curiosidade do meu imaginário que talvez tenha assistido a filmes demais.