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RUMO À DESCOBERTA DE SI: BEIRA-MAR

O primeiro longa-metragem realizado pelos jovens cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, da produtora gaúcha Avante Filmes, estreou no Brasil no começo de novembro, mas já despertava interesse internacional, devido à forte presença em festivais LGBT, no Festival de Berlim e ao streaming disponibilizado pelo Netflix americano e canadense.

“Beira-Mar” acompanha os adolescentes Martin e Tomaz em uma viagem ao litoral gaúcho para resolver uma pendência familiar de Martin em nome de seu pai, figura distante que exerce papel repressivo na vida do filho – e que em sua aparição, está de costas e fora de foco, presente através de uma voz que apenas dá as ordens, não se interessa e não se conecta com o rapaz. O jovem Tomaz, por outro lado, é o amigo fiel que gravita em torno do cara mais popular e supostamente mais “experiente”, impressões que na adolescência cosmopolita passam constantemente pelo consumo de álcool, drogas e pela desenvoltura sexual que eles pensam ter, conforme acabam descobrindo depois.

A partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.

O começo do filme é interessante ao sugerir que a viagem dos dois amigos irá provocar descobertas afetivas e sexuais (sugeridas sem muita sutileza numa cena em que eles jogam videogame, e com pouco mais de poesia através dos desenhos de Tomaz). Entretanto, o prólogo logo dá lugar a alguns episódios com pouca força e regularidade, como os momentos em que Martin se encontra com os parentes distantes e tem que encarar o fato de que seu pai decepcionou a todos. Tais encontros parecem vazios e a interação peca pelo excesso de estranhamento, que não se rompe, nem mesmo quando esposa do avô divide um chimarrão com Martin. O desenvolvimento precário desse plot torna difícil acreditar na rapidez das conclusões do rapaz ao final, a respeito da própria necessidade de amadurecer e que “lado” gostaria de estar, no imbróglio familiar.

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O uso do “voice over” para nos aproximar das novas ideias do jovem causam estranhamento em relação ao restante da obra, e parece que o recurso foi usado unicamente porque seria impossível desvendar todas as conclusões do adolescente apenas pelo que é mostrado no filme. Será que era necessário mastigar tudo o que Martin viveu ao final de “Beira-Mar”, quando a própria estética e caminhar do longa-metragem apostam no silêncio, na contemplação e na confusão presente na mente dos garotos, sugerida por ecos do barulho do mar?

Se o desenvolvimento de Martin se dá com irregularidade, ao menos a presença de Tomaz traz substância ao filme. A princípio um jovem discreto que acompanha o amigo em sua saga, colocando-se em segundo plano, Tomaz cresce ao longo da história ao demonstrar sua fidelidade e compreensão, e ao quebrar a expectativa de que seria ele o “inexperiente”, devido à aparência mais delicada e aos indícios de sua homossexualidade. No entanto, como se demonstra através da música do grupo NoPorn e seu refrão “eu sei quem eu sou”, Tomaz é mais consciente de sua sexualidade e afetividade, e é comovente a cena em que Martin reconhece que o amigo é “foda”, por sua generosidade em colocar de lado os próprios dramas em favor de Martin.

Quando fica claro, então, que Tomaz é quem sabe o que quer, as referências se invertem, e é bonito notar que Martin só é capaz de se entregar ao amigo quando confessa sua inexperiência e vulnerabilidade, desviando-se do exemplo de “masculinidade” representado pelo pai, com sua distância, frieza e despreocupação em criar com o filho um vínculo baseado na confiança, e não no poder. Tomaz representa a possibilidade do inverso. Seguindo exemplo de “Os incompreendidos”, de Truffaut, e também do nacional “Praia do Futuro”, de Karim Aïnouz, o encontro de Martin com o mar (tão adorado pelo cinema) indica que descobrir algo sobre si, de maneira verdadeira, torna os caminhos anteriores impossíveis. Atravessar as águas surge como a única e imperiosa alternativa.

 

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Uma bonita curiosidade sobre o processo de criação do filme: quando eram colegas do curso de cinema, os diretores descobriram que haviam frequentado a mesma praia do litoral gaúcho durante a adolescência. As memórias da época e suas próprias experiências serviram de inspiração para a criação de “Beira-Mar”.