Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

A PASSAGEM DO TEMPO COMO TEMA E EXPERIÊNCIA: MULHER DO PAI

Por muito tempo vi o tempo como uma espécie de inimigo, que me atingia maneira tão irreversível que meu desejo muitas vezes foi ter a capacidade fantástica de pará-lo, ou fazê-lo voltar. No entanto, nenhum desejo nesse sentido jamais foi ou será realizado. Custou-me até ver que o tempo não me atinge de maneira pessoal, não existe apenas para me embranquecer os cabelos.

Sou budista, e penso muito em um termo que para nós budistas é essencial para a compreensão do tempo como lei da natureza, na qual estamos mergulhados simplesmente porque vivemos: anicca. Impermanência, transitoriedade.

Esse aspecto da experiência humana independe de crença ou religião, e me parece o tema em “Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira. Após a morte da avó, a adolescente Nalu pergunta ao pai, Rubens, se eles continuarão a fabricar lã, a principal atividade da família até ali. Rubens, encostado à parede a uma distância “segura” da filha, diz que não, afinal ela não quer saber de tear. Implicitamente, não quer saber de seguir aquele movimento. Há uma ruptura, o tempo de Nalu é outro.

O verão que marca o início do filme traz consigo a novidade para a população de uma pequena cidade no extremo sul do Brasil. São os uruguaios na fronteira, a professora de artes, a descoberta da sexualidade de Nalu. Sucedem-se os fatos e também as estações. A mudança no filme, além de causa, é também tema e objetivo. O roteiro tem o mérito de não funcionar de maneira demasiado esquemática, com a personagem que passa por algo e daí “aprende” uma lição de maneira simplista.

Assistir a “Mulher do Pai” me trouxe àquelas questões deliciosas a respeito de estar em uma sala escura observando nossa tentativa coletiva de guardar, perseguir, ou “exorcizar o tempo”, como diria Bazin. Se tudo está circunscrito no passar das horas, de maneira irrevogável, o cinema parece estar ainda mais: está ele mesmo contido no tempo – o filme que dura duas horas –, ainda que busque contê-lo.

Também o cinema pode ter em si a contemplação de anicca, da transitoriedade. A experiência de crescimento e formação de Nalu não pode ser contida nem em um filme, nem no espaço de um ano delimitado diegeticamente por ele. O delicado desenvolvimento do relacionamento com o pai, no entanto, acontece nesse espaço apertado de alguns meses. A consciência interna do filme, de que o tempo passa sem pausa ou pena, causa a suspensão de certos momentos: a busca de Nalu pelo toque do pai, a amizade verdadeira de Rosário, o movimento terno/tenso de olhar para os sentimentos através da escultura com argila.

Os fragmentos desse percurso se tornam então preciosos, quando lhes dedicamos o olhar da impermanência. A trajetória de Nalu não é apenas deixar de se opor à força da mudança – seu pai se envolvendo com a professora, a escola que terminou –, é também se entregar a essa espécie de lei, aprender a navegar com ela, o que resulta num relato de maturação muito verdadeiro.

De maneira silenciosa, há também uma trajetória da liberação feminina possível naquele espaço/tempo. Rosário, a professora de artes para quem “os homens da vila são que nem os trens: só passam, nunca param”, acaba tornando-se a chave para a mudança de Nalu. É a única pessoa que a incentiva a viver para além dos homens: do pai que deveria cuidar, dos rapazes como o uruguaio ou os porto-alegrenses prometidos pela amiga de escola. De maneira um tanto realista, um tanto triste, Rosário substitui Nalu no cuidado ao homem que lhe poderia ser uma prisão. De maneira às vezes tão devagar que mal pode ser notada, a mudança para as mulheres faz-se muitas vezes às custas umas das outras.

A caminhada final de Nalu, com mochila nas costas, tem um pouco de “O céu de Suely”, um pouco de “Os incompreendidos”, é a partida rumo ao movimento puro e simples, um retrato da impossibilidade de manter-se onde está. Uma entrega da personagem à transitoriedade como lei da natureza, como dor e libertação.

DE CORPOS, FLUXOS E IDENTIDADE: MÃE SÓ HÁ UMA

Podemos pensar a dramaturgia de Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert, a partir de duas chaves iniciais de aproximação: a primeira é ter uma trama livremente inspirada no caso Pedrinho – o bebê raptado em uma maternidade em Brasília, em 1986; a segunda é a construção identitária do protagonista – o adolescente de 17 anos, Pierre/Felipe (Naomi Nero).

Apesar de tomar como ponto de partida um evento real, o longa não pretende se vincular a uma tradição de gênero “inspirado em fatos reais” – tanto que há uma recusa do uso de qualquer cartela explicativa/informativa sobre o caso Pedrinho. O real aqui não é apreendido como um tour de force, mas como motivador de narrativas possíveis, que inclusive jamais se deixam seduzir pela espetacularização dos pormenores do caso.

No entanto, seguindo o mesmo procedimento de Que Horas Ela Volta?, parece ainda ser inevitável à Muylaert – e, em alguma medida, até escorregadia – a tendência em reforçar o estereótipo do modo de vida da classe média. Isso é feito a partir de componentes cômicos, como a sequência da reunião com a família para tirar um selfie ou a cena em que pais biológicos sugerem uma viagem à Disney.

O filme ganha outros matizes quando se detém no protagonista Pierre/Felipe: um jovem de gênero fluido, que está experimentando as diferentes possibilidades de vivência da sexualidade, durante sua formação na adolescência. De certa forma, ele se assemelha à protagonista de Tomboy (2011), da cineasta francesa Céline Sciamma, que ganhou o prêmio Teddy há cinco anos, em Berlim, tal como Mãe Só Há Uma conquistou em 2016. Os dois filmes não só tratam do gênero pelo viés da performatividade, como também reposicionam a temática dentro do universo da infância e da adolescência, que são intransponíveis ao mundo adulto.

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Tia Yana (Luciana Paes), Jaqueline (Lais Dias) e Pierre/Felipe (Naomi Nero).

Em Tomboy, Laure é uma menina de 10 anos, que se apresenta como Michael para um grupo de amigos vizinhos. Ela se veste como garoto e procura se adequar aos códigos de comportamento que são esperados socialmente de um menino. Em Mãe Só Há Uma, Pierre/Felipe também vai subvertendo aos poucos os códigos que lhe são imputados: ele passa a usar vestido, batom vermelho, calcinha com cinta liga. Em ambos os filmes não há posicionamentos fechados em relação à sexualidade dos dois personagens, mas uma abertura aos cruzamentos performativos entre gêneros.

Afetada por um corpo em formação, em estado transitório, a câmera de Mãe Só Há Uma quase tateia a pele de Pierre/Felipe. Em especial nos momentos em que ele se observa diante do espelho e nas cenas em que ele se sente mais livre, nas festas noturnas ou nos ensaios com sua banda de rock.

É fundamental a mudança de operação estética da imagem, orquestrada pela fotógrafa uruguaia Barbara Alvarez. Ela se arriscou mais aqui pela fluidez formal do que no longa anterior de Muylaert, Que Horas Ela Volta?, filme enrijecido pelo rigor da composição do quadro, capaz de sublinhar as relações de poder no ambiente de trabalho da empregada doméstica Val (Regina Casé).

Apesar das motivações serem completamente distintas, é possível encontrar ressonâncias entre Pierre/Felipe, de Mãe Só Há Uma, e a Jéssica (Camila Márdila), de Que Horas Ela Volta?, na medida em que ambos os personagens desestabilizam a ordem de uma cena constituída de onde eles não pertencem. No caso de Pierre/Felipe, a casa dos pais biológicos, que insistem no bom comportamento do jovem como o filho ideal, principalmente o pai conservador Matheus (Matheus Nachtergaele). No caso de Jéssica, a casa dos patrões de sua mãe empregada, com todas as regras tácitas de uma vida burguesa.

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Matheus, o pai (Matheus Nachtergaele).

Ao longo da narrativa, o filme nos entrega um segundo protagonista: o irmão biológico caçula Joca (Daniel Botelho), que enfrenta conflitos amorosos na sua pré-adolescência e demonstra certo desconforto com o comportamento de sua família tradicional. Se de início existe uma distância natural entre Pierre/Felipe e Joca, os dois irão se aproximar por essa sensação de deslocamento. A direção de Muylaert tem a perspicácia de não anunciar isso logo de imediato, de ir compondo aos poucos, dando grandeza a um personagem que até então parecia ser secundário.

Outra estratégia importante da direção é ter dado a uma só atriz (Dani Nefussi) o papel das duas mães: Aracy, a mãe que criou, e Glória, a mãe biológica. Ainda que o espectador não perceba (até porque a excelente caracterização das personagens procura deixá-las bem distintas), é algo que redimensiona literal e psicanaliticamente o título para além do ditado popular de que “mãe só há uma”. Estamos novamente diante de um filme de/sobre mãe, mas agora acalentado pela perspectiva de um filho que se descobre, ao mesmo tempo em que conhece seu próprio mundo.

RUMO À DESCOBERTA DE SI: BEIRA-MAR

O primeiro longa-metragem realizado pelos jovens cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, da produtora gaúcha Avante Filmes, estreou no Brasil no começo de novembro, mas já despertava interesse internacional, devido à forte presença em festivais LGBT, no Festival de Berlim e ao streaming disponibilizado pelo Netflix americano e canadense.

“Beira-Mar” acompanha os adolescentes Martin e Tomaz em uma viagem ao litoral gaúcho para resolver uma pendência familiar de Martin em nome de seu pai, figura distante que exerce papel repressivo na vida do filho – e que em sua aparição, está de costas e fora de foco, presente através de uma voz que apenas dá as ordens, não se interessa e não se conecta com o rapaz. O jovem Tomaz, por outro lado, é o amigo fiel que gravita em torno do cara mais popular e supostamente mais “experiente”, impressões que na adolescência cosmopolita passam constantemente pelo consumo de álcool, drogas e pela desenvoltura sexual que eles pensam ter, conforme acabam descobrindo depois.

A partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.

O começo do filme é interessante ao sugerir que a viagem dos dois amigos irá provocar descobertas afetivas e sexuais (sugeridas sem muita sutileza numa cena em que eles jogam videogame, e com pouco mais de poesia através dos desenhos de Tomaz). Entretanto, o prólogo logo dá lugar a alguns episódios com pouca força e regularidade, como os momentos em que Martin se encontra com os parentes distantes e tem que encarar o fato de que seu pai decepcionou a todos. Tais encontros parecem vazios e a interação peca pelo excesso de estranhamento, que não se rompe, nem mesmo quando esposa do avô divide um chimarrão com Martin. O desenvolvimento precário desse plot torna difícil acreditar na rapidez das conclusões do rapaz ao final, a respeito da própria necessidade de amadurecer e que “lado” gostaria de estar, no imbróglio familiar.

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O uso do “voice over” para nos aproximar das novas ideias do jovem causam estranhamento em relação ao restante da obra, e parece que o recurso foi usado unicamente porque seria impossível desvendar todas as conclusões do adolescente apenas pelo que é mostrado no filme. Será que era necessário mastigar tudo o que Martin viveu ao final de “Beira-Mar”, quando a própria estética e caminhar do longa-metragem apostam no silêncio, na contemplação e na confusão presente na mente dos garotos, sugerida por ecos do barulho do mar?

Se o desenvolvimento de Martin se dá com irregularidade, ao menos a presença de Tomaz traz substância ao filme. A princípio um jovem discreto que acompanha o amigo em sua saga, colocando-se em segundo plano, Tomaz cresce ao longo da história ao demonstrar sua fidelidade e compreensão, e ao quebrar a expectativa de que seria ele o “inexperiente”, devido à aparência mais delicada e aos indícios de sua homossexualidade. No entanto, como se demonstra através da música do grupo NoPorn e seu refrão “eu sei quem eu sou”, Tomaz é mais consciente de sua sexualidade e afetividade, e é comovente a cena em que Martin reconhece que o amigo é “foda”, por sua generosidade em colocar de lado os próprios dramas em favor de Martin.

Quando fica claro, então, que Tomaz é quem sabe o que quer, as referências se invertem, e é bonito notar que Martin só é capaz de se entregar ao amigo quando confessa sua inexperiência e vulnerabilidade, desviando-se do exemplo de “masculinidade” representado pelo pai, com sua distância, frieza e despreocupação em criar com o filho um vínculo baseado na confiança, e não no poder. Tomaz representa a possibilidade do inverso. Seguindo exemplo de “Os incompreendidos”, de Truffaut, e também do nacional “Praia do Futuro”, de Karim Aïnouz, o encontro de Martin com o mar (tão adorado pelo cinema) indica que descobrir algo sobre si, de maneira verdadeira, torna os caminhos anteriores impossíveis. Atravessar as águas surge como a única e imperiosa alternativa.

 

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Uma bonita curiosidade sobre o processo de criação do filme: quando eram colegas do curso de cinema, os diretores descobriram que haviam frequentado a mesma praia do litoral gaúcho durante a adolescência. As memórias da época e suas próprias experiências serviram de inspiração para a criação de “Beira-Mar”.