Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

HERANÇA DA MASCULINIDADE: UM LIMITE ENTRE NÓS

Um Limite Entre Nós é uma adaptação fílmica da peça teatral Fences, escrita por August Wilson, que conta a história de Troy Maxson, um coletor de lixo que mora em Pittsburgh com sua família nos anos 1950. Denzel Washington assume a direção e reprisa seu papel como o protagonista, que o mesmo interpretou no revival da peça na Broadway em 2010. Ele traz consigo para a tela boa parte desse elenco, incluindo Viola Davis no papel de sua esposa Rose.

Denzel optou por ser fiel a algumas qualidades teatrais da obra: a maior parte das cenas do filme se passa em uma única locação, onde eles conversam, discutem, resolvem seus problemas e também celebram alegrias. Ao mesmo tempo, há um incômodo por não vermos nunca vizinhos nem figurantes nos quintais ao redor, sempre vazios, o que desperta uma sensação de artificialidade análoga ao que encontraríamos no teatro. Os diálogos longos talvez possam ser estranhos para um público acostumado a um cinema mainstream que privilegia a ação, mas Denzel foi hábil em equilibrar essas características teatrais com uma linguagem cinematográfica. Além disso, as ótimas interpretações e uma mise-en-scène harmoniosa garantem nosso engajamento na trama.

A diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen emprega movimentos de câmera tradicionais, evitando extravagâncias estéticas e concentrando a atenção na performance dos atores. Em alguns momentos mais emotivos, entra a singela trilha sonora que ajuda a embalar uma atmosfera sentimental, acompanhada de uma aproximação leve nos rostos dos atores. Esses elementos, tão comumente usados no cinema para indicar ao espectador como se sentir, são bastante discretos no filme de Denzel. Essa estética sóbria ajuda a balancear os momentos mais dramáticos, em que a encenação poderia se tornar exagerada. Embora o trailer possa sugerir o contrário, esse excesso não acontece no filme.

fencess.jpg

A história de Troy traz um ponto de vista bastante masculino. Rose é a única mulher do filme por quase toda sua duração. Outras mulheres são apenas mencionadas, mas nunca aparecem, com apenas uma exceção perto do final. Já homens existem em abundância: os filhos de Troy, Lyons e Cory, o amigo Bono, o irmão Gabriel. Rose também não tem uma trama própria, e todas as suas ações, vontades e desejos no filme estão relacionados ao marido. O que esclarece a indicação de Viola Davis a melhor atriz coadjuvante nessa temporada de premiações, ao invés de melhor atriz.

O filme gira em torno da insatisfação de Troy com o rumo de sua vida, frustrado pela discriminação racial e falta de oportunidades que lhe negaram o sucesso que almejava. Ele ainda mantém seu espírito rebelde e insubordinado, como quando luta para conseguir mudar para uma função melhor no emprego, que não era comum darem a pessoas da sua cor. Porém, o filme traz o tema da perpetuação da violência masculina que é passada de geração em geração: Troy impõe a seus filhos a mesma brutalidade que sofreu de seu pai. 

Ele não está imune às consequências de seus atos. Por vezes sente culpa e tenta reparar alguns de seus feitos, mas seus familiares estão sempre tendo que lidar com sua teimosia. É custoso ver como esses personagens são reféns dessa figura de autoridade patriarcal, o homem de família provedor que usa da violência para submeter os outros ao seu domínio. Há outros personagens que contrastam com essa figura, como o irmão Gabriel e o amigo Bono. Este último inclusive avisa Troy das ciladas em que pode se meter caso não mude seu comportamento. O próprio título original Fences se refere à cerca que Troy está construindo em seu quintal, que funciona como metáfora para essas relações conturbadas vividas pela família. Nesse caso, as entrelinhas poderiam ter conservado a força da analogia, que é excessivamente expressada por meio de diálogos no filme: “Algumas pessoas constroem cercas para manter os outros fora, e outras o fazem para manter os outros dentro”.

O filme mostra como o machismo de Troy prejudica sua vida, mas ainda assim lhe traz vantagens. Ele reconhece que as melhores coisas que viveu foram possibilitadas por Rose, que sempre esteve ali por ele. Mas esse reconhecimento se mostra apenas retórico em diversos momentos em que ele não só demonstra colocar suas próprias prioridades acima da dignidade dela, como espera que ela arque com as consequências das irresponsabilidades dele. Além disso, os outros ao seu redor acabam sendo condescendentes com suas loucuras e até o tratando com uma certa veneração. Isso demonstra o motivo pelo qual a agressividade masculina é passada de geração em geração, e como os que se opõem a ela encontram tantas barreiras para estabelecer uma mudança sistêmica na sociedade.

Como Rose diz em um momento, o mundo mudou em vários aspectos, só que Troy não percebeu. Cory, herdeiro do espírito rebelde de seu pai, promete jamais compactuar com ele novamente. O filme sugere, porém, a possiblidade de que justamente o perdão seja uma saída para quebrar o ciclo dessa violência masculina e seguir em frente, coisa que Troy jamais conseguiu fazer por seu próprio pai.

NOSTALGIA, TRUMP E STATUS QUO: VAMOS FALAR SOBRE O OSCAR

No mais recente romance da escritora Zadie Smith, uma passagem em especial me chamou a atenção: “Pessoas como nós, nós não podemos ser nostálgicas. Nós não temos lar no passado. A nostalgia é um luxo.”[1] Essa fala é dita num contexto particular, mas suas conotações vão além da cena e do próprio livro que a contém. É claro que nostalgia é um luxo, um privilégio até. Para a pessoa que profere a fala, uma mulher negra ativista política, isso é especialmente contundente. Para sua filha, a quem tal fala se dirige, as coisas são mais nebulosas.

Como a própria autora do livro, a narradora de Swing Time é filha de uma mulher negra de origem jamaicana e de um homem branco inglês, obcecada por dança e musicais antigos. Esse amor pelo passado, entretanto, não pode acontecer de forma inconsequente, sem ver os atores em blackface com uma pontada de ressentimento. A nostalgia irrefletida é impossível para ela e, portanto, um luxo do qual ela não pode usufruir. É natural que ler esse livro uma semana antes da entrega dos Oscars me faça revisitar minhas próprias reflexões sobre outra obra que também trata de passado, jazz e cinema.

Em La La Land, a nostalgia é o sentimento que permeia todo o filme. Os protagonistas querem atuar nos musicais dos anos 30, dançar como Fred Astaire, salvar o jazz. É difícil ver essas pessoas brancas enaltecendo o passado como uma época gloriosa e inalcançável sem ouvir ecos do slogan do novo presidente americano: “Make America great again”. Precisamos “salvar” o jazz do que a música contemporânea está fazendo com ele – personificada aqui por ninguém menos que John Legend, um cantor negro – precisamos salvar os Estados Unidos de todos esses imigrantes mexicanos e ativistas lutando pelos direitos das minorias. Não é a primeira vez que a arte, o território e tantas outras coisas originalmente pertencentes a povos indígenas e negros precisam ser “salvos” por pessoas brancas e não será a última.

É bem possível que Damien Chazelle não estivesse consciente da mensagem reacionária do seu filme. Pode ser que não houvesse malícia ou objetivos políticos explícitos por trás da história que ele queria contar. Afinal, quando se conta uma história de amor entre um homem e uma mulher brancos é só isso, né? Uma história de amor. Mas quando se tratam de duas pessoas negras ou duas mulheres ou dois homens, qualquer coisa que fuja ao padrão, o filme passa a ser visto como político, como um filme sobre raça, sexualidade. É possível que Damien Chazelle não estivesse consciente do discurso conservador de La La Land, mas apenas porque seu status como “padrão” facilita que ele ignore sua responsabilidade política, como se contar exclusivamente história sobre pessoas brancas heterossexuais não fosse, também, um ato político.

161116_books_zadiesmith-crop-promo-xlarge2

Zadie Smith

Voltando ao romance de Zadie Smith, torna-se óbvia a diferença entre os dois artistas. Enquanto Smith não pode escapar de reflexões de gênero e raça porque elas fazem parte de algo que ela precisa lidar todos os dias como mulher negra, ele não só pode, mas o faz e recebe inúmeros prêmios no caminho. Prêmios estes, aliás, que refletem não só a ignorância política dele, mas de Hollywood como instituição. É quase cômico ver os “artistas” que representam Hollywood e têm se posicionado contra o governo de Donald Trump distribuindo prêmios para um filme cuja mensagem não é muito distante do conteúdo de seus discursos. É aquela velha máxima hollywoodiana, ‘separe a obra do artista’, evoluída para ‘separe o cinema do contexto político’, coisa que, é claro, é impossível.

Não existe cinema sem política. Artistas, como seres humanos que interagem com o mundo, não fazem arte sem fazer política. Hollywood, como uma força poderosa que influencia enormemente as imagens que são reproduzidas mundo afora, é, também, uma instituição com caráter político. Não é à toa que, um ano depois das inúmeras reclamações sobre a falta de diversidade nas premiações ilustradas em particular pela hashtag #OscarsSoWhite, o número de filmes protagonizados por homens e mulheres negras indicados a prêmios importantes tenha crescido vertiginosamente. É preciso cuidado, entretanto, ao observar esses acontecimentos com um olhar puramente positivo. A Academia, a Hollywood Foreign Press e tantas outra associações que compõem o cenário da indústria cultural americana não decidiram, de repente, fazer filmes com maior diversidade porque era a coisa certa a fazer. Eles perceberam duas coisas: primeiro, que já havia filmes de grande qualidade sendo feitos por artistas negros e que não estavam sendo reconhecidos; segundo, que filmes com protagonistas diversos eram rentáveis.

Você pode imaginar qual desses dois fatores teve maior peso.

Não é nenhum segredo que o cinema é uma arte cara. Os estúdios hollywoodianos movimentam sozinhos bilhões de dólares por ano, os investimentos são maciços e os lucros, por consequência, devem ser gigantescos. Diferentemente de outras formas de arte, um dos aspectos mais relevantes ao se discutir o sucesso de um filme hollywoodiano é o quanto ele arrecadou em bilheteria. A posição que o dinheiro ocupa nas decisões feitas dentro de Hollywood é, na maioria dos casos, central. Isso significa que as pessoas que tomam as decisões mais importantes dentro da indústria cinematográfica americana são aquelas que possuem os meios de produção — historicamente, homens brancos.

hidden-figures-hf-228_rgb-e1483623580966

Estrelas além do tempo (2016)

Assistindo a Estrelas Além do Tempo há algumas semanas, me perguntava sobre a frequente presença do “White savior” em filmes protagonizados por negros. O “White savior” se trata de um personagem branco – na maioria das vezes, homem – cuja existência benevolente permite com que os protagonistas negros sejam tratados de forma (um pouco mais) justa.

Neste filme, o “White savior”, interpretado por Kevin Costner, foi uma invenção. Ele não existiu nem no mundo real nem no livro da escritora Margot Lee Shertterly no qual o filme se baseia. Além disso, eles escolheram ignorar a importância das cotas raciais que permitiu que as três protagonistas da história trabalhassem na NASA em primeiro lugar. Ao fazer da boa vontade de pessoas brancas em posição de poder algo essencial para o sucesso de negras que são apresentadas como extremamente capazes e talentosas, cria-se um mito meritocrático focado em indivíduos ao invés de tratar da crise sistemática causada pelo racismo institucionalizado.

É importante notar, entretanto, que dentro de Hollywood, a realidade não é muito diferente disso. Enquanto Estrelas Além do Tempo e Loving contaram histórias sobre pessoas negras auxiliadas por pessoas brancas e foram dirigidos por homens brancos, Moonlight do diretor negro Barry Jenkins não apresenta nenhum “White savior”, mas foi necessária a intervenção de Brad Pitt para que o filme tivesse a chance de ser indicado a melhor filme. Isso significa que Moonlight não tem qualidade suficiente para estar entre os melhores filmes do ano? Não. Apenas que, num sistema dominado por homens brancos, ele não teria espaço em Hollywood a menos que um desses poderosos homens brancos decidisse fazer algo por ele.

Agora, a real questão: por que esperamos a consideração de uma indústria historicamente racista, homofóbica e misógina para legitimar os filmes feitos por grupos minoritários? Assim como outras tantas lutas – vem à mente, por exemplo, a batalha pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo – a grande dúvida paira no ar: devemos lutar para sermos aceitos pelo sistema ou para desmantelá-lo?

A resposta, como sempre, não é simples. É essencial criar espaços de resistência, premiações alternativas, festivais com curadores diversos tanto em gênero quanto raça e sexualidade. Mas ainda assim, não podemos ignorar o peso que uma premiação como o Oscar apresenta. É, sim, uma vitória que filmes como Moonlight, Loving e Estrelas Além do Tempo tenham sido indicados nessa temporada. É uma vitória porque, enquanto festivais de cinema podem ser mais diversos, é inegável que existe um certo elitismo em espaços “de arte” que deixa as pessoas desconfortáveis. É uma vitória porque nós podemos ter essa conversa sobre raça e gênero durante o jantar com nossos familiares. É uma vitória porque filmes com personagens negros vão ser exibidos em salas de cinema no interior do país.

É uma vitória também porque premiações alternativas, apesar de fundamentais, podem passar uma impressão quase negativa. Filmes de mulheres tem que ser julgados entre outros filmes feitos por mulheres para terem a chance de serem premiados? Um dos trunfos dos Oscars está também no fato que nunca houve uma segregação explícita: o prêmio deveria ir para os melhores filmes, diretores, editores independente de raça ou gênero, e se, na maioria dos casos, eles vão para homens brancos isso quer dizer que eles fazem filmes melhores, não? Desconsidera-se que são eles que detém os meios de produção, desconsidera-se que são eles que julgam e votam nos prêmios que serão distribuídos.

Assim, retornamos ao nosso problema inicial. Filmes feitos por homens brancos não são lidos politicamente pois o status quo permite que eles sejam vistos como padrão. Domingo, quando entregarem o Oscar de melhor filme aos produtores de La La Land, eles estarão premiando um musical, uma história de amor. Se, contrariando todas as expectativas, eles premiarem Moonlight, será um ato político. Mas se dar um Oscar para um filme dirigido por um homem negro é um ato político, por que os outros 87 Oscars recebidos por brancos não o são?


[1] Tradução livre. Original: “People like us, we can’t be nostalgic. We’ve no home in the past. Nostalgia is a luxury.”