Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

A JUVENTUDE INTERROMPIDA: SONHOS ROUBADOS

“Quero, quero muito, quero agora, sem demora.”

Enquanto acompanhamos Jéssica pedalando pela favela onde vive, no início de “Sonhos Roubados” (2009), a música de Maria Gadú denuncia previamente o que passa pela cabeça e pelos corpos das três jovens protagonistas: desejos e, em suma, sonhos, tão grandes e intensos quanto distantes da realização.

Lançado no mesmo ano que o badalado “As Melhores Coisas do Mundo” (2009), de Laís Bodansky, o longa de Sandra Werneck escolheu outra face da juventude para retratar. Diferente dos jovens ricos do primeiro filme, que se desdobram sobre a sexualidade com leveza, as meninas de “Sonhos Roubados” já conhecem o sexo desde cedo e, na falta de outros espaços de empoderamento, usam a sensualidade e a sexualidade para se afirmar e se sustentar.

Sabrina, Daiane e Jéssica: na falta de presenças femininas adultas, elas são a principal referência umas das outras.

Sabrina, Daiane e Jéssica: na falta de presenças femininas adultas, elas são a principal referência umas das outras.

A pobreza, a fragilidade da estrutura familiar e a falta de perspectivas atingem Jéssica (Nanda Costa), Sabrina (Kika Farias) e Daiane (Amanda Diniz) de diferentes maneiras, todas elas perpassando o desconforto em não ter autonomia, ou poder de decisão real sobre suas vidas. Cada uma delas tenta reagir como pode: Jéssica tenta ser durona e obter poder através de sua sensualidade, mas não tem um bom plano para salvar o avô ou manter a filha; Sabrina, no início a que mais acredita na escola, se vê sabotada pela falta de aulas e logo cai no conto do príncipe encantado, indo morar com um traficante de drogas; e Daiane, a mais nova, faz de tudo para tornar reais seus rituais de passagem para a vida adulta, negando a própria infância, que ela associa com a fragilidade.

Filmado de maneira dinâmica e sem sentimentalismos por Walter Carvalho, o filme acerta nas cenas em que deixa que as personagens falem um pouco sobre como se sentem naquele universo caótico, de maneira quase documental, como quando Jéssica vai ao cemitério ver o túmulo da mãe. É uma pena que tais cenas aconteçam com pouca frequência no filme, dando lugar a outros momentos frágeis dramaticamente, em que frases de efeito e lições de moral preenchem a tela, como quando o avô de Jéssica reflete: “a gente passa pela vida que nem fantasma”. A frase soa como uma ideia exterior ao filme, plantada de fora para dentro, que empurra uma definição fechada sobre o que é a história.

As personagens, em geral, são bem construídas, graças ao bom trabalho do trio principal e de Marieta Severo, como Dolores, a dona do salão de beleza que acolhe Daiane. O longo período em que a narrativa se desenvolve, de mais de um ano, passa pelos rituais de passagem da adolescência para o mundo adulto que são comuns em filmes sobre juventude. Aqui, no entanto, o amadurecimento não chega com a entrada na universidade, com o início de um namoro ou uma oportunidade de intercâmbio, como no simpático filme “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014).

Diferente dos jovens mais privilegiados do “asfalto”, as meninas não tem escola qualidade (quando não faltam professores, há greve), não tem dinheiro e não foram treinadas ou educadas para um trabalho que as tire de dentro da favela. São ignorantes sobre suas opções e acabam escolhendo o que mais parece promissor naquele mundo. Ser objeto do desejo de homens poderosos, poder comprar roupas bonitas, ter um celular, pintar os cabelos e frequentar o baile: eis as formas de empoderamento disponíveis para as jovens.

A rua e seus perigos surgem, na falta da escola e de um lar estruturado, como ambiente de construção de identidade. Nesse aspecto, o filme dialoga com “Garotas” (2015), de Céline Sciamma, ainda que não tenha o mesmo sucesso deste em mostrar como meninas podem se tornar a referência máxima umas das outras, na falta de exemplos de mulheres que possam se destacar por quaisquer meios que não sejam os “das ruas”: formação de gangues, prostituição e venda de drogas e armas.

Daiane é a única que conhece uma mulher adulta em que pode se inspirar (já que sua tia não faz mais que exercer o covarde papel de acobertar o marido pedófilo) e a quem pode pedir ajuda, e não à toa, é quem consegue realmente mudar a situação de sua vida e vislumbrar um novo futuro, como cabeleireira. Jéssica alcança certo amadurecimento quando aceita a realidade: não quer ter o mesmo destino de sua mãe, e se ajusta ao emprego que não desejava, para ter a filha de volta. Sabrina, no entanto, se deixa levar pelo encanto do príncipe encantado e pela sexualidade juvenil nas alturas, que a diretora acerta ao tratar sem julgamentos. No entanto, engravida e enfrenta o que muitas jovens conhecem muito bem: poucos príncipes resistem a uma prova de responsabilidade, e as mães brasileiras sabem bem como é criar um filho sem pai.

Para não deixar passar batido, já que mencionei o filme “Garotas”, surpreendeu-me o fato de que até mesmo um filme com essa temática não tenha, entre três protagonistas, nenhuma personagem assumidamente negra. Digo “assumidamente” pois é clara a tentativa de incorporar traços afro às personagens Daiane e principalmente Jéssica, através de pesado bronzeamento e, no caso de Nanda Costa, uso de aplique de tranças conhecidas como rastafári. A personagem Sabrina incorpora a origem da atriz Kika Farias, com seu sotaque pernambucano, o que não compensa, a meu ver, a não escolha de uma atriz negra em um filme com histórias próximas ao cotidiano das meninas negras nas favelas brasileiras (e se não soubessem disso, não teriam se importado tanto em alterar a aparência das atrizes). Seria medo de colocar uma menina negra e ser justamente taxado de ser mais um filme com uma negra como favelada? Ou seria mais um caso de “as atrizes foram escolhidas pelo talento”, resposta tão utilizada da boca pra fora?

Como disse Tânia Montoro (1): “Interessa-me observar como o(s) significado(s) do filme não se reduz(em) aos elementos que compõem sua linguagem, uma vez que os filmes estão inseridos em outras práticas culturais e revelam experiências em perpassam a cotidianidade. Os filmes, dessa forma, não são eventos culturais autônomos, encontram-se inseridos em outras práticas sociais que conotam um leque de sentidos.” A partir desse entendimento é que defendo que cabe fazer este questionamento a respeito de “Sonhos Roubados”. Não cabe dizer que “é só ficção” quando o filme tem uma proposta clara de retratar uma suposta realidade das jovens brasileiras (usando em algumas cenas linguagem de clara inspiração documental). Não questiono o trabalho das atrizes do filme, certamente bom, na medida do texto que tinham à mão. Mas me pergunto, hoje e sempre: não existem boas atrizes negras no cinema nacional, que poderiam dar cara, com igual ou maior fidelidade, às angústias juvenis presentes na história? Como um filme que conta uma história na favela só tem um ator negro (MV Bill) em seu elenco de destaque, e vários atores brancos? Ficam minhas perguntas.

“Sonhos Roubados” (2009), com direção de Sandra Werneck.

Com Nanda Costa, Amanda Diniz, Kika Farias, Marieta Severo, Daniel Dantas e MV Bill.

Disponível no Netflix.

(1) Tânia Montoro:”A construção do imaginário feminino no cinema espanhol contemporâneo”. In: De olho na imagem, de Tânia Montoro e Ricardo Caldas. Página 17. 2006.