Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Amanda Lavenère

Realizadora e colaboradora do Verberenas desde novembro de 2016.

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UM EXPERIMENTO SOBRE CORPOS ABJETOS: ADVANTAGEOUS

Dirigido por Jennifer Phang, o filme saiu em cartaz este ano e muito me admira a pouca repercussão que tenho visto em torno dele.

Advantageous (infelizmente não temos um título em português) é um filme escrito, dirigido e produzido por mulheres – o que fica bem claro do início ao fim do filme. Excelente exemplo sobre como é importante estarmos representadas dentro da indústria cinematográfica.

Trata-se de uma ficção científica que conta a história de Gwen Koh, mulher, mãe solteira e porta-voz de uma grande empresa que oferece serviços de beleza.

Desde os primeiros minutos, o filme retrata a íntima relação entre Gwen e sua filha Jules, de 13 anos. As personagens estão muito bem construídas dentro da história, com uma sensibilidade que se torna um dos pontos mais fortes de “Advantageous”.

A história acontece quando Gwen resolve falar com seu chefe, David, a respeito de um aumento. Depois de tanto tempo na empresa ela acredita que seria justo, mas surpreende-se com a notícia de que, devido à sua aparência de alguém que já estaria “velha demais” para o cargo, será demitida. Gwen provavelmente se preparou durante semanas para ter a coragem de pedir um aumento à seu chefe homem, mas em troca recebe um soco no estômago logo de cara.

Apesar do choque, Gwen acredita reconhecer seu valor no mercado e pensa poder conseguir um outro emprego com facilidade, tudo para poder pagar a universidade particular de Jules. E é aí que entra o grande ponto da história: a empresa que Gwen trabalhava impede-a de se reposicionar no mercado. Logo vemos que não só Gwen, mas grande parte das mulheres estão tendo grandes dificuldades para arrumar emprego, e isso dá-se pelo fato de que os donos das grandes empresas, assim como David, pretendem mandar as mulheres de volta para casa – com base num argumento estúpido de que homens desempregados representam um risco maior de violência para a cidade.

Desempregada e sem nenhuma esperança no futuro, Gwen recebe uma proposta tentadora: seu emprego será mantido sob a condição de que seja a cobaia de um experimento cujo objetivo é rejuvenescê-la. Gwen sabe que os riscos são grandes e até chega a pedir ajuda às poucas pessoas que imagina poder contar: mãe e irmã. Ambas a culpam pelo mesmo motivo e é nesse momento em que descobrimos que Jules é, na verdade, o fruto de uma relação entre Gwen e o marido de sua irmã. Passamos a entender porque Gwen vive tão isolada, porque o tempo inteiro ela parece ocupar espaço em um corpo que não é seu, como se a culpa a tivesse dominado por inteiro. Gwen cometeu o mesmo ato que o marido de sua irmã, mas o dedo foi apontado apenas sob sua face.

Esse momento merece atenção especial porque ao mesmo tempo em que mostra a culpabilização da sociedade sobre a mulher, mostra também a posição da irmã de Gwen – como esposa que perdoa o marido mas que não consegue perdoar a irmã, ainda que tente muito. Mas, afinal, quem pode culpá-la? Se somos criadas, mesmo que como irmãs, para competirmos entre nós mesmas o tempo inteiro? Criadas para sermos perfeitas enquanto homens permitem-se ser falhos?

É também uma cena incrível porque mostra o desinteresse do marido em saber se Jules era sua filha ou não, e que, por ser homem, lhe é dado o privilégio da dúvida. Vê-se como é imposto à Gwen a obrigação de sofrer as consequências de seus atos sozinha e calada – cabe somente a ela a responsabilidade do feto.

É por causa dessa culpa que Gwen deixa de se enxergar como ser humano. Sua existência deixa de ter valor e ela se torna apenas um corpo abjeto para si própria. Seu objetivo de vida passa a ser único e exclusivamente o de criar Jules, de oferecê-la uma vida plena e feliz, a vida que Gwen não merece mais. É um ritual de passagem, onde Gwen vê em Jules a mulher que ela talvez nunca tenha sido, mas que, com certeza, nunca será. Sendo assim, seu processo de “desumanização” começa muito antes da cirurgia.

Jules é um personagem excelente. Ela simboliza a geração de mulheres que lidam diariamente com a pressão de serem perfeitas, de fazerem parte do famoso “pacote completo”. Veja que Jules é criança e já pensa em procriar, sendo essa a principal função dela como mulher na sociedade em que vive. As outras funções – estudo, profissão, beleza, juventude – estão ali para provar que mulheres são tão capazes quanto os homens de ocupar um espaço. Porque os homens só precisam nascer homens, mas as mulheres devem cumprir todos esses papéis – e exercerem perfeição em cada um deles – para se darem ao luxo de concorrer à uma vaga nesta irônica sociedade patriarcal. A pressão é tão grande que Jules se pergunta o tempo inteiro qual o sentido de sua vida, um pensamento que provavelmente já foi passado para ela através de Gwen, pelos motivos que comentei acima.

Por fim, para manter seu emprego e poder oferecer o futuro que deseja à Jules, Gwen decide fazer a cirurgia – se é que em algum momento isso foi de fato uma decisão. Mas não acaba aí, porque um dos motivos da demissão de Gwen havia sido o dela não possuir uma beleza “universal”, o que poderia gerar problemas lucrativos para a empresa. Essa questão toca num ponto importante, que é o da “universalização” da beleza da mulher. E por “universalização” lê-se uma mulher branca, magra, de preferencia alta e de cabelos lisos. Dentro de um padrão bem eurocêntrico e norte-americanizado da ideia de beleza. Se estivéssemos mesmo falando sobre quantidade, sendo que a população da Ásia corresponde a 4,427 bilhão de pessoas, enquanto que a da América do Norte corresponde a 528,7 milhão, não faria mais sentido que a “mulher padrão” fosse asiática, como Gwen?

Para concluir de maneira brilhante, Jennifer Phang finaliza o filme colocando no lugar de Gwen uma mulher que cai de pára-quedas na história. Talvez não seja proposital, mas há grandes indícios de que essa mulher simbolize a pressão que existe em torno de todas nós para sermos mães perfeitas. Mães que, ao engravidarem, automaticamente já devem saber o que fazer. Que devem ter todas as respostas, sobretudo aquelas que os pais não têm. Que muitas vezes não estão preparadas, mas devem assumir este papel.

Advantageous é um filme classificado como ficção científica, mas nos coloca – de maneira brilhante, diga-se de passagem – diante de uma reflexão sobre as semelhanças entre o mundo de ficção em que Gwen vive e a realidade em que estamos inseridas.

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